Para José Maria Dias da Cruz
O mundo nunca foi violáceo
ou se foi nunca foi só isso, é claro.
O mundo nunca foi óbvio, nem raro.
O mundo nunca foi claro.
Elaine Pauvolid
Observe-se a folha com 5 pontas no primeiro nível de percepção. Observe-se as linhas que convergem para um determinado ponto. Este ponto tem uma força de atração enorme, e nos dá uma consciência de um espaço plástico. Observe-se, agora, em uma forma bem alongada em cor terrosa na base levemente à esquerda e em uma outra, também terrosa, maior, com várias pequenas interferências, quase como constelações de estrelas em aparente desordem. Uma linha imaginária e estrutural ligando essas duas formas passa pelo ponto que acima referido e faz com que essas duas formas ganhem uma força de divergência ou de afastamento em relação àquele ponto. Há, portanto, uma estrutura formal com uma potencialidade intensa. Com essa estrutura Braque se libera. Escolhe, quase ao acaso, os amarelos e os esverdeados, todos levemente rompidos, ou seja, como sobre o quadro percebêssemos uma atmosfera. Ou, se quisermos, a manifestação, no quadro, do cinza sempiterno com seus enigmas. Esse cinza sempiterno surge pela qualidade dos contrastes simultâneos. Aqui cabem umas observações. Um vermelho e seu oposto, um verde, se colocados lado a lado, ganham em cromaticidade, pois um e outro se realçam mutuamente. Já duas cores semelhantes, como no quadro de Braque, um amarelo avermelhado e um outro esverdeado, se colocados lado a lado, perdem em cromaticidade, ou seja, se rompem simultaneamente por efeito de suas opostas, ou suas respectivas pós-imagens.
Os amarelados, nesse quadro de Braque, são uma evidente referência a Van Gogh. Referência esta, no entanto indireta, pois neles se manifesta o cinza sempiterno, ausente
Observe-se como uma folha quase solta à esquerda acentua toda a potência do espaço plástico gerado pelo quadro, potência essa que permite o surgimento desse amarelado tão estranho. Ao tocar a borda essa folha impede que os limites da estrutura subjacente do suporte, com seus eixos horizontais e verticais e as diagonais, assumam sua força composicional latente. Esse quadro reafirma aquilo que Braque afirma: "O pintor pensa por formas e cores, o objetivo é a poética." Surge um mistério, um estranhamento, sentimentos simultâneos de alegria e tristeza, de espanto, de revelação, etc.
Ainda sobre essa folha à esquerda podemos falar do serpenteamento vinciano, mais ligado às formas do que às cores. Diz Leonardo que “devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo e o modo como serpenteiam...” Trata-se, aqui, das linhas de contorno dos objetos como limites e dentro dela uma outra que serpenteia. Não é, como se diz, apenas o esfumato, mas uma linha que anima o espaço plástico. Dessa forma a folha, ao tocar a borda esquerda, permite que se estabeleça uma dialética entre o espaço que limita o quadro e a consciência de um espaço plástico além daquele limite. O modo como o artista trabalha a superfície deste mesmo quadro pode nos levar à percepção de um espaço além dessa superfície. Vale, aqui, transcrevermos dois versos do poema extravio do poeta Júlio Castañon Guimarães do poema Extravio: “(luz indecisa / ou quebra do horizonte?)”.
O interessante é observarmos como Leonardo nos adverte como devemos evitar que a pintura morra por duas vezes ao afirmar que o pintor, ao transpor os objetos para o quadro pode matá-lo se não souber lhes dar vida. Mais ainda podemos dizer sobre o artista que trabalha com os objetos no espaço no qual nos orientamos. Pode matá-los, também, se ignorar as possibilidades do serpenteamento.
Não parece que vemos este quadro pelos intervalos e que e nos leva a pensar plasticamente sem nenhuma necessidade de verbalizações? Ele dispensa explicações, e o que acima escrevi tem como objetivo, somente, de mostrar sua estrutura.
Tentemos deixar sair de dentro de nós tudo que está lá
Cito aqui um e-mail que recebi do artista Milton Machado.
“É o que diz a moça: "...vc pinta um universo e depois se põe dentro dele".
Pôr-se dentro é pintar um universo, pois não? Olhar de fora é pintar, pois não? Um erro cometido por críticos, de Greenberg a Moraes, foi o de achar que os pintores pintam de dentro, quando o que pintam é justamente o dentro. Numa visão materialista, enfatizada por Cézanne, o dentro são os limites da tela. Já os limites da pintura, dependem de onde se coloca a tela. No MoMA, na National Gallery, no Prado, os limites são ilimitados. No hall da reitoria, os limites dependem da ousadia da semana. Ou do dia. Ou da hora. Ou do Haro.”
José Maria Dias da Cruz
Setembro de 2008
A folha sozinha em um dos quadros sou eu. Como escreveu Cézanne "... uma tristeza que ninguém disse." Tinha doze ou treze anos. Você sabe que gostei de revê-los. Não me lembrava.
Muitos artistas freqüentavam a casa de meu pai. Santa Rosa, Pancetti, Milton da Costa, Iberê, Di Cavalcanti, etc. Mostrava meus quadros para todos que sempre me orientavam. A Tarsila conversou comigo e escreveu uma carta para meu pai referindo-se só a mim. Infelizmente a carta se perdeu.
Sobre a folha sozinha o Mollica percebeu uma coisa emocionante. "Pois é, Zé, a folha está sozinha, mas está cercada de rosa e azul, cores muito carinhosas e receptivas ao olhar do espectador. Pense nisso."
Portanto tem o primeiro quadro, uma construção espacial cerebral e o segundo, que saiu do coração. "E agora, José?"
Abraços doGauguin disse que as cores são enigmáticas e pintou o quadro De onde viemos, o que somos e para onde iremos. Cézanne fez referência a um cinza que reina em toda a natureza e que pintava sempre uma secção do espaço. Talvez desenha-se, assim, uma geometria das cores.
O cinza onipresente, os cinzas sempiternos e sua lógica e os acasos, as várias dimensões das cores, a questão de uma centralidade não absoluta, os rompimentos dos tons, os contrastes considerando uma dinâmica cromática, harmonias e desarmonias, o serpenteamento, as cores abstratas substantivas e concretas adjetivas, podem nos levar a algumas reflexões. Consideramos as várias geometrias conhecidas e aquelas que, pelo acaso, hão de vir.
Na década de sessenta do século passado disse que uma realidade poderia se desdobrar em outras. Surgiram os quadros os quais denominei formulários. As cores eram timidamente pensadas graças às impressões que tive, dez anos antes, quando pela primeira vez vi ao vivo quadros de Poussin, Cézanne e Braque. Dez anos depois essas idéias se adensaram. Disse, então, que pelos diversos desdobramentos de uma realidade chegar-se-ia a um estado de confusão em nossos pensamentos tais que o acaso seria o limite desses pensamentos. A geometria dos fractais, que veio à tona em 1978, e a teoria do caos ainda eram desconhecidas do grande público. Foram divulgadas para os leigos em 1980. Pintei naturezas mortas considerando essas minhas observações. Na década de oitenta, mais próximo daqueles três grandes artistas, pensei no cinza sempiterno, já inteiramente interessado nos fenômenos cromáticos. Hoje penso em uma geometria das cores.
Vejamos, há o cinza onipresente que contém todos os coloridos, cinza esse que nos é interditado. Resta-nos um cinza sempiterno, causa e efeito dos coloridos. Um colorido, portanto, é uma fração e dele podemos dizer que, como fração, é maior que o todo. Como as cores possuem várias dimensões diremos que elas estão sempre se auto organizando dentro de um colorido. Acontecimentos ao acaso participam dessa auto organização, pois um colorido, pela sua dinâmica própria, pode gerar outros cinzas sempiternos, ou seja, outros fracionamentos em seu interior. Os acasos seriam, portanto, as novas convivências cromáticas que surgiriam da necessidade dessa auto organização e do surgimento de outros cinzas sempiternos. Digamos, novas cores que participariam do colorido em determinado nível de realidade. Há um limite, entretanto, pois essa auto organização se encaminharia para o cinza onipresente que, como dissemos, nos é interditado. Dependendo de nós como testemunhas, se desorganizam. Somos levados a escolher algumas poucas cores decorrentes do acaso para não nos perdermos, para evitarmos um fim prematuro. Daí falar do acaso da última pincelada e citar Cézanne quando ele afirma que a harmonia se dá por si só. Um novo processo semelhante de auto organização se inicia, uma outra realidade. E assim sucessivamente até onde nossos sentidos são capazes de suportar. A vida de um colorido depende de seu princípio, o cinza onipresente e de seu fim, sua própria morte, como uma existência que nos é dada. Volto a citar Braque: “É o acaso que nos revela a existência.” Transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan retirada de seu livro, Entre o Cristal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro.
[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças de desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética , mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.
Para nós este cinza sempiterno pode ser o princípio e o fim pois é, como vimos, um pré ou pós fenômeno. Princípio quando intuímos que dele surgem os coloridos. Fim, quando nossos sentidos não mais nos permitem os acasos. Compreendemos Baudelaire quando ele se refere ao prazer e ao pecado. Apoiados nessa referência diremos que as cores são simultaneamente o prazer e o pecado. O fim (ou o princípio?) dos acasos coincide com o nosso fim: a nossa morte. Pelas cores podemos refletir sobre a ética. O nosso esforço para não nos perdermos no colorido tem um sentido ético. O enigma, entretanto, permanece.