Orlando Mollica – Troca de emails


Mollica

Você, como sempre disse, me surpreende pelas mudanças e estas agora me pareceram bem radicais. Nunca imaginei você às voltas com naturezas mortas, ainda mais nos passando a impressão de que são produtos de uma longa maturação, de anos até. As questões espaciais que você procura resolver são bem complexas, pois temos simultaneamente um espaço lá, albertiano, perspectivado, já que o suporte é uma foto; um espaço ali, e neste prevalece a pintura, no qual os gestos têm uma enorme participação quando quase anulam os objetos representados com vigorosas pinceladas, (o banco da foto exemplifica bem isso com quase como uma mancha jogada ao acaso que desrespeita os contornos do objeto, com uma coloração avermelhada alaranjada e alguns semitons cobrindo o assento); e por último um espaço aqui, na medida que nos coloca como testemunhas no sentido de conciliador das contradições daquelas duas representações espaciais e aqui temos claro a utilização da lógica do terceiro incluído. Para mim é neste último que a cor tem seu papel mais curioso no trabalho. Você faz que nosso olho não se fixe em um determinado lugar dando-nos a liberdade de olharmos de acordo com o ritmo que escolhemos ou, se você quiser, nos permite ver pelos intervalos. Por exemplo, ainda o banco com a pincelada avermelhada alaranjado. Ao lado um azul claro, a cor oposta e logo acima uma mancha esbranquiçada. São muitas as cores de passagem e são essas que permitem vermos pelos intervalos sem nos perdermos das cores iniciais que mais ativam nossa percepção.

Como você mesmo diz, além do mais, é um olhar crítico para essas imagens espalhadas pelas luxuosas revistas de arquitetura e decoração dirigidas para um público específico, e por isso totalmente vazias para quem pretende usar um olhar prospectivo. Certamente, como subproduto do neoliberalismo, contenta-se em um olhar que considera o simples aspecto.

A partir daí, dessa sólida construção plástica, você permite nos fazer refletir, nos incentivando a estudar ao mostrar como vai se formando um nexo no nosso imaginário a partir do qual podemos compreender a complexidade cultural de nosso país, desde o período colonial até a contemporaneidade considerando, inclusive, os artistas estrangeiros que aqui aportaram no século XIX.

Um forte abraço

JM


Oi Zé

Grato pelos comentários. São sempre observações muito pessoais e por isso mesmo muito valiosas, porque se assentam num processo de reflexão sensível e vivencial com a imagem, afora o conhecimento teórico sólido adquirido após muitos anos de trabalho. Tudo isso, como sempre, com a sua marca pessoal, o que faz o comentário sair completamente do óbvio, de tudo o que não acrescenta nada, ou então de não ficar preso a uma cartilha qualquer considerada aquela que é importante no momento da moda atual, para meia dúzia de críticos com cabeças feitas de fora para dentro: críticos de ocasião.

O trabalho tem sido desenvolvido com muito empenho e sinceridade, evitando soluções fáceis, e considerando que tenho que lidar com a imagem fotográfica impressa para incluí-la como pintura, mesmo às custas de criar situações dentro de uma tradição ilusionista, que faço questão de enfatizar, até porque é parte intrínseca da história da pintura. Tratar o "campo pictórico" como um jogo complexo de modos de olhar foi uma das coisas que aprendemos com Leonardo, Manet, Monet, Gauguin, Cézanne, Braque e muitos outros. Todas as tentativas de acabar com a pintura passaram pelo discurso que desconhece o poder que se tem ao saber tratar do plano pictórico como um território povoado de virtualidades, de possibilidades. Tentar planarizá-lo ou tridimensionalizá-lo é de alguma forma uma renúncia àquilo que a pintura pode oferecer de melhor no campo das artes, além da sua especificidade. Atualmente estou pintando em grandes formatos, radicalizando essas experiências.

Forte abraço

Mollica

(Pedi ao Mollica que me enviasse um comentário sobre determinado quadro de Guignard que nos ajudará a mostrar como seu pensamento se articula.)

Zé,

Ai vai mais ou menos transcrito na forma em que escrevi na minha tese de doutorado sobre "A Família do Fuzileiro Naval”, Guignard, 1930:

Certamente é em Alberto da Veiga Guignard, em sua A Família do Fuzileiro Naval que o imaginário proveniente da obra de Gilberto Freyre aparece com toda sua vitalidade e limpidez. Nesse quadro, o pintor define basicamente dois planos distintos: o do interior e do exterior, do lado de fora da janela dupla de venezianas de um casarão com ares franceses, que insinua ser uma habitação típica da aristocracia que descende dos barões do café.

Alberto da Veiga Guignard - A família do fuzileiro naval – Col. Gilberto Chateaubriand.

No seu interior, confrontando o espectador, aparece uma família de mulatos, que posa de maneira hierática como o faziam as grandes famílias das elites brasileiras tradicionais e históricas, desde os tempos coloniais. Ao centro, Guignard pintou a pequena bandeira do Brasil, empunhada pelo menino e recortes da arquitetura da casa, delimitando os contornos com linhas retas , deixando transparecer ironicamente uma identidade cultural decalcada visualmente, porém recalcada, na prática. No fundo do quadro, no plano externo à casa, para além das janelas, se abre uma paisagem vaporosa, onde as coisas não tem contornos nítidos, quase onírica, lírica, cenográfica, sensual e idealizada como uma espécie de paraíso celestial, que contrasta violentamente com o arranjo do primeiro plano, quase geométrico do grupo familiar,contornado fortemente pelas linhas pretas, cuja formalidade e o engajamento das vestes pressupõe uma inserção social absolutamente ordenada.

Isso tudo aparentemente acontece porque a natureza artificialmente paradisíaca, a paisagem verde rósea do fundo, paradoxalmente, contamina e organiza plasticamente os personagens, atribuindo-lhes um caráter meramente, ou melhor, altamente alegórico: simulacro de uma cidadania que se dá apenas no plano virtual, de um país que, mesmo atravessando um período político de transformações profundas, quanto mais se moderniza, mais precisa se manter no passado para que se mantenha fiel à sua cultura, à forma como foi moldado pela colonização portuguesa.

O país apregoado por Freyre, mesmo que incorporando à sua identidade aspectos da miscigenação cultural, representada sob os mais diversos aspectos, como sendo a terra do "mulato inzoneiro" - como cantou Ary Barroso na sua Aquarela do Brasil, composto em 1939, e considerado pelo então ditador , Getúlio Vargas um ícone de brasilidade genuína, cooptada pelo seu desenho de nacionalismo, até porque se agregava adequadamente na sua política de inclusão das massas mestiças, pobres, desprovidas de qualquer tipo de cidadania e oriundas em sua grande maioria do campesinato. Pelo menos para Guignard neste quadro, o Brasil não conseguiu se estabelecer naquele tipo de presente que tentava representar sua modernização, e até pelo contrário, se paralisa numa perspectiva de um futuro, de uma virtualidade quase sobrenatural, antecipando visualmente a concepção do "Brasil, país do futuro", tal como foi enunciada por Stefan Zweig (1941): uma nação em permanente estado pretérito: um país transcendental.

Na visão de Guignard, dentro do contexto do quadro A Família do Fuzileiro Naval, o Brasil nunca poderá cortar completamente suas raízes coloniais. Quanto mais futuro tiver, mais no passado deverá se manter.

Eis o paradoxo que esse pintor genial nos legou.

Grande abraço

Mollica

Poema de Silvana Leal escrito a patir de um texto que é um resumo de meu livro.


Os acordes da Cor

Silvana Leal


a não-cor como ancoragem

terceiro tempo nada absoluto


a cor quer romper o tom

a cor se faz em tempos diversos

a cor cai de tempos em tempos


a cor amanhece clara

depois vibra como nunca

logo após vira sombra

linguagem cromática do tempo


a cor sagrada da alma - a arte

A Lagosta de Delacroix

Quem visita o Louvre encontra em uma das principais alas alguns quadros de Delacroix, entre eles um bastante citado por historiadores, críticos, etc., o quadro intitulado A Liberdade Guiando o Povo. Mas em outra ala, bem menor, vai se deparar com o quadro A Lagosta, pintura para pintores, infelizmente pouco conhecido e estudado. Esse quadro é fortíssimo. A vida e morte é o seu tema. Troquei algumas idéias com as amigas Elaine Pauvolid e Paula Laranjeira. Os comentários foram tão ricos que resolvi mostrar o quadro em meu blog para quem quiser estudá-lo possa fazê-lo.

Este texto é o resultado de conversas que mantive durante uma semana com Elaine Pauvolid, Paula Laranjeira e Orlando Mollica sobre um quadro de Dalacroix que eu denomino A Lagosta. Portanto eles são co-autores.

Nesse quadro de Delacroix há uma discussão bem complexa sobre a vida e a morte, e o curioso é que a morte, está representada pelos animais em primeiro plano: as lagostas, a lebre e os pássaros pintados em "cores vivas", menos um réptil anfíbio, uma salamandra, que esta viva. E a salamandra é um ser mítico que está bem presente no imaginário de alguns povos. No lado direito, abaixo, há um plano, com uma mancha escura acima, que pode ser um muro, e nosso olhar não consegue ir além dele. No lado esquerdo, em contraponto, há um outro espaço, este com linhas inclinadas, como se esboçasse um caminho que nos possibilitasse chegar ao segundo plano onde se nota, em tons mais brandos, bem distantes, uns cavaleiros, portanto, uma representação de coisas vivas. Curioso esse contraste. Há ainda as questões cromáticas. Predomina um contraste alaranjado-violáceo que potencializado faz surgir um esverdeado, e isso era teorizado pelo pintor que afirmava que na natureza tudo se resumia ao acorde laranja, verde e violeta. Repare que os esverdeados no quadro, menos evidentes, estão todos rompidos. Ganham alguma evidência induzidos pelos alaranjados e violáceos. Portanto o colorido se afirma e acaba, assim, dialogando com as formas e daí enfatiza o narrativo, mas deixando-o subordinado à plasticidade. Delacroix, me parece, nos aponta para o enigmático e, como já disse, nos faz pensar na nossa própria condição, ou no miserere, isto é, na imperfeição própria dos homens. Por isso que digo que é uma pintura para pintores. Curioso é se constatar que um dos quadros mais comentados e reproduzidos de Delacroix seja A Liberdade Guiando o Povo. Logo depois o pintor, desencantado, se refugia em seu atelier onde nunca mais pintou quadros panfletários.

Para terminar seguem umas frases retiradas de um e-mail que me foi enviado pelo artista plástico Orlando Mollica:


"É a forma romântica de se expressar ante a uma realidade política de esfacelamento social: uma Revolução que prometia tudo e que acabou muito mal.

Esse anti-climax que rolou no começo do século XIX e provocou, ou melhor, acirrou o ânimo dos românticos, abasteceu fortemente a criatividade desses artistas. Com Delacroix não foi diferente.

Mas, a bem da verdade, com o capitalismo ainda e cada vez mais forte e impiedoso, vide crise européia, USA, Oriente Médio, África, os milhões de miseráveis e desempregados espalhados desde o primeiro ao último mundo, e o planeta batendo pino, a atualidade de visões céticas e sinistras como a de Delacriox ainda são muito atuais."

José Maria Dias da Cruz

Abril - 2011

FORMULÁRIOS


Chardin, a poesia muda e a verdade em pintura


Chardin, que pintor complexo! Difícil falar-se de sua pintura. Mas há uma frase que pode nos permitir alguns comentários. Diz ele que o pintor tem que manter uma certa distância de seu modelo. Pensamos: se há uma aproximação o pintor pode se perder nos detalhes; se um afastamento, se perde da pintura; no devido lugar compreende a verdade da pintura. É curioso
observar suas pinceladas. Não demonstram um gesto, mas a objetividade ou realidade de uma pincelada, como que dissesse "isso é uma pincelada". O mesmo se pode dizer das cores: "isso não é a cor de um objeto, isso é uma
cor." Pouco importa que se muitas vezes muito esmaecida. Cézanne o compreendeu muito bem quando afirmou que "La nature se debrouille." A pintura por si só se organiza dentro de uma lógica. Uma figura, em um quadro de Chardin, nunca aparece inteira em muito de seus quadro, sobretudo naqueles pintados em sua maturidade. Um detalhe identificável, e a figura surge inteira. Há um quadro, uma cena interior. Uma empregada recostada em
um móvel, pousa levemente a mão sobre uns pães em cima do móvel. Na outra mão uma sacola com talvez uma ave morta. A saia é de um azulado esmaecido. A
sacola, os pães, a mão sobre eles pousada surgem pela identificação do rosto da empregada. O cômodo onde ela está, bem sombreado. Se liga por uma porta, pelo lado esquerdo a uma outra sala, mais iluminada. Entre uma sala e outra um filtro enorme em solene perfil, e penso em um objeto carregado de metáforas. Ou uma fronteira entre os dois espaços, o sombreado e o mais claro, filtro que elimina os recalques das sombras e ilumina as possíveis fantasias da empregada no primeiro plano de percepção. No fundo dessa sala contígua, perto de uma outra porta, uma talvez uma projeção da empregada,
conversa com um galanteador. Além desta porta um pedacinho mínimo de céu se apresenta como um limite do mundo dessa adorável empregada.

Uma aproximação de Chardin com o narrativo. O quadro em questão ilustra bem aquilo que Leonardo nos fala: "A pintura é uma poesia muda."

Penso que Chardin nos diz: não é, mas é, basta ver pelos intervalos. Por aí refere-se apenas à pintura, e nos faz pensar na sua verdade.

Noto que hoje há um interesse em Manet. Penso que para se estudar Manet tem que se começar por Chardin. Cézanne disse, diante das flores de Manet que ali estava a verdade da pintura. A verdade da pintura, como motivo da própria pintura, talvez comece em Chardin.

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO
O vernissage da exposição "As formas do colorido" e o lançamento do livro "O cormatismo cezanneano", de José Maria Dias da Cruz, se darão no dia 14 de Junho, às 19 horas. O endereço da Galeria TNT é; Estrada Barra da Tijuca, 1636 - Loja A - Itanhanguá. O telefone para mais informações é: 21 2495 5756. A exposição seguirá até o dia 28 de Junho de 2011.