É um vesro só:


Para que todas as cores se temos o cinza?
Elaine Pauvolid

Email para Renato Velasco

Trata-se do serpenteamento vinciano, e dos espaços exclusivo e inclusivo.  Ilustrara-se com imagens de Michel Ângelo, Cézanne, Hélio Oiticica e José Maria Dias da Cruz.

Renato Velasco

Como vc está? Por aqui com alguns probleminhas destes que sempre atravessam nossas vidas e que logo passará. O importante é que apesar de tudo continuo criativo, com muitos projetos e acreditando que posso deixar algum material para que depois possa ser estudado, já que na minha obra procuro fugir dos dogmas que são criados, que como diz Gauguin, desorientam não somente os artistas, mas o público em geral. Certamente devo ter cometido muitos equívocos, mas no geral não creio que esses desmereçam o que tentei mostrar. Digo tudo isso, pois vi em seu trabalho muita coerência, muitas potencialidades que certamente serão aprofundadas na medida em que vc for amadurecendo, - sim, a pintura, e por extensão as artes plásticas, é realmente bastante complexa.  Percebe-se um grafismo em seus últimos trabalhos e vejo aí a necessidade de um aprofundamento dessa questão que é bem instigante.  Afinal ainda podemos pensar na questão da linha nas artes plásticas. Cézanne afirmou que ela não existe na natureza, o que existe é uma relação de tons, ou claros ou escuros e pelas tramas que vc constrói pode ir bem longe nessas discussões. E certamente aprofundar aquilo que Leonardo afirmou sobre a pintura linear ao introduzir o conceito de serpenteamento. Aqui entra um dos dogmas que são criados não sei bem como, mas está dito em todas as histórias das artes que Leonardo introduziu o esfumato na pintura. Para mim esfumato é um procedimento e não uma questão teórica. Já o limite dos corpos, limites estes que Leonardo diz que serpenteiam é bem mias complexo, e creio que pode ser estendido para todo o espaço plástico em substituição à linha a qual Cézanne afirma que não existe. Substitui-se, assim, a linha por esse serpenteamento, que é bem mais do que dar um traço com volteios. Por enquanto não estou afirmando nada, mas expondo minhas dúvidas, resultantes de minhas observações e que me impulsionam para novos estudos. Sobre essas dúvidas creio que ficam mais bem expostas no meu livro sobre o cromatismo cezanneano. Só estou te escrevendo para te mostrar, se é que consigo apontar para caminhos que vc poderá desenvolver.

E há mais ainda. Atualmente está me assaltando a idéia do que pode ser nas artes plásticas um espaço plástico exclusivo ou inclusivo. Ou um ou outro ou a convivência dos dois. Explico-me. Por exemplo, a estátua do David de Michel Ângelo se fosse transportada para a floresta amazônica iria nos forçar a abrir uma grande clareira, pois é uma obra que exige um espaço exclusivo apesar dele considerar o conceito de no finito, ou seja,  não há um limite absoluto. Uma mosca que pousasse na estátua já seria uma interferência que ela recusaria. Já as montanhas de Santa Vitória de Cézanne têm um espaço mais inclusivo, pois nela se manifesta o cinza sempiterno que segundo o mestre só ele se manifesta também em toda a natureza. Os relevos de Hélio Oiticica também criam um espaço inclusivo e isto afirmo em meu livro sobre o cromatismo de Cézanne.  Creio que seu trabalho também pode se encaminhar para esse problema.
Abç
JM

David de Michel Ângelo

 Maria-sem-vergonha – José Maria Dias da Cuz

 Montanha de Santa Vitória – Cézanne

Relevo – Hélio Oiticica

Raul Dufy

Paisagem - 1908

O artista deve começar seu aprendizado vendo as obras, estas são as fontes primárias confiáveis. Depois o que os artistas escrevem. Por último, com muita cautela, consultar os historiadores e críticos de arte. Veja-se um quadro do Dufy. Foi mesmo um precursor do cubismo, e não um pintor que aderiu a essa escola como muitos outros, o que não é dito em nenhuma história da arte. O quadro acima foi pintado em 1908. O que me levou a pesquisar isso foi uma declaração de Duchamp na qual ele afirma que o cubismo começa com Cézanne e passa pelos fauvistas e não por Picasso. Inclusive nesse quadro de Dufy podemos perceber que ele compreendeu bem a frase de Cézanne na qual afirma que devemos tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro. Mas surgiu por um equívoco de um artista e crítico, Emile Bernard quando este faz em um artigo publicado em jornal uma referência. Esse equívoco fez fortuna. Por isso Gauguin disse que os pintores não precisam em nenhum caso das instruções dos homens de letras que desorientam não somente os artistas como o público em geral . Mas basta se ler uma outra frase de Cézanne para ficar claro que realmente ele não poderia ter se ao cubo, uma vez que afirmou que os corpos no espaço são todos convexos. O que não é o caso do cubo.

José Maria Dias da Cruz
Florianópolis – junho de 2011

Paula Laranjeira em um e-mail comenta o quadro Formulário

Às vezes me empolgo! Depende muito do eu estado de espírito. Em certos momentos, preciso de freios para deixar os pensamentos em estado de calmaria. Acho que estava assim no dia que te enviei o último e-mail e em nossa última conversa. Mas você veio calmo, ponderado, serenando a inquietude que havia se instalado em mim. É sempre bom conversar com você.

Se te faço pensar com meus e-mails cheios de dúvidas e sede, também os seus me deixam em estado reflexivo. Um bom exemplo é o Formulário, que me chamou o pensamento numa noite de insônia. Talvez quisesse entender o que se escondia naquela imagem que poderia não dizer nada, mas que estava/está prenha de significados. O que é um formulário? É uma espécie de documento feito para dar informações exatas sobre algo ou alguém. Que pode ser pensado como instrumento de usos variados (na época em que foi pintado ele fazia parte do seu cotidiano, mas também do dia-a-dia de inúmeras outras pessoas e para fins variados, desde o mercantil até o uso político). Entretanto ao trazê-lo, você quebra a regra, se coloca contrário à norma estabelecida, pautada na obrigatoriedade de se escolher algo: ou isto ou aquilo, sem meio termo. Mas você se dá o direito, através dessa pintura, de escolher as duas opções existentes ou de não escolher nenhuma. Dessa forma, levando-se em conta o período e a sua intenção, o formulário é um convite ao gozo da liberdade. O que me faz, partindo dessa lógica, cogitar que realmente não entenderam seu trabalho, pois ele seria, seguindo este pensamento, uma expressão fiel de ruptura com o pensamento vigente.

Se minhas loucas ideias estiverem completamente descabida me avisa...tenho que parar de dar asas aos pensamentos relâmpagos.

O que está além do visível? Paula Cajaty analisa em entrevista com José Maria Dias da Cruz

Paula Cajaty é escritora, poeta, advogada, conselheira editorial e cronista. Em seu site [ www.paulacajaty.com ] oferece poesias, contos, críticas, dicas e resenhas, além de entrevistas com artistas plásticos, intelectuais e autores.

Na entrevista a seguir, realizada em abril de 2011, Paula Cajaty perscruta o pensamento plástico de José Maria Dias da Cruz.

Você busca a base de tudo o que vemos, aquilo que está oculto por trás de toda cor, aquilo que o olho não alcança. Essa busca é, na verdade, a tentativa de entender o mundo como dicotomia entre superfície e profundeza, e a tentativa de entendimento dessa lógica?

Tenho mais de 60 anos de estrada. Daí responder às perguntas considerando, sobretudo, o que me ocupa atualmente. Isso não me exclui de levantar algumas considerações históricas. Uma delas é a questão da cor, que sempre foi muito recalcada em nossa cultura, sendo considerada, por exemplo, por nomes como Aristóteles e Kant como uma coisa supérflua. A cor sempre me interessou. Outra: a questão da dicotomia superfície profundidade. A perspectiva cientifica foi uma conquista da Renascença. Creio que o primeiro pintor a enfrentar a dicotomia superfície/profundidade tenha sido Caravaggio quando pintou uma natureza morta que está em um museu de Milão [Segue a imagem abaixo].


Essa natureza morta é construída toda baseada no número de ouro. Esse quadro prenuncia o quadro objeto em substituição ao quadro janela. O curioso que nela a cor é muito pouco explorada, daí Poussin ter afirmado que Caravaggio foi posto no mundo para acabar com a pintura. Põe em questão, asssim, a discussão entre desenhistas e coloristas. Já Cézanne afirma que quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma se precisa.
Já a questão da planaridade foi apontada por Grimberg em meados do século XX como a única característica da pintura não compartilhada com nenhuma outra arte. Dizia ele então que os pintores deviam considerar apenas a superfície plana. Como meus interesses sempre colocaram as cores em primeiro plano procurei estudar os pintores coloristas, desde os venezianos, passando por Leonardo, Poussin, Chardin, Delacroix, Braque, além de outros, mas sobretudo Cézanne. Este dizia que a luz não existe para o pintor. Dizia também que somente um cinza reina na natureza. Daí ter chegado ao cinza sempiterno, que não existe, mas é potencialmente ativo, como o vazio cheio da física quântica. Neste caso é um pós ou pré fenômeno. As cores simultaneamente para esse cinza convergem e divergem. Estudei também o serpentaeamento, levantado por Leonardo no Tratado da Pintura. E nele está dito que devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo para observar como serpenteiam. Ou seja, como dão vida à pintura. Nas histórias das artes sempre está dito que Leonardo introduziu o esfumato na pintura. Esfumato é um procedimento e não uma questão teórica. Tudo isso está me fazendo pensar em uma geometria das cores na qual entra em jogo outras dimensões do espaço plástico, inclusive as temporais, portanto uma lógica, como diria Cézanne, nada absurda. Estou tentando entender quais as formas dos coloridos. Entra aqui a geometria dos fractais, na qual o cinza sempiterno é sempre uma constante, seja no todo ou nos fracionamentos deste.

Para entender mais sobre pintura, você passeia em outras áreas de conhecimento, também elas feitas de contrastes, rompimentos e escolhas justas. Essa visão de conjunto e interdisciplinar permite entender e perceber melhor a própria pintura?

Certamente que sim, mas hoje penso também na transdisciplinaridade. No mundo tão facetado no qual vivemos, agravado por um neo liberalismo inqualificável, não vejo outra saída. Assim a arte pode ser entendida como um sobrevôo.

Em uma das frases citadas de Cézanne, ele dizia que pintar é contrastar. Escrever também é um exercício de contrastar? De dialogar, e de experimentar limites e serpenteamentos?

A literatura não é a minha área, mas sempre gostei de ler romances e poesias. Aliás, tive um professor, o aquiteto Aldary Toledo, e eu tinha meus 14 anos, que me disse que se aprende mais pintura lendo-se poesia. Nunca me apeguei muito a livros teóricos, li alguns apenas. Aqui seria interessante citar Gauguin. Este dizia que os pintores em nenhum caso deveriam se ocupar com os homens de letras, referindo-se aos teóricos. Estes criam dogmas que desorientam não somente os artistas, mas o público em geral. O caso do esfumato que citei acima pode ser um bom exemplo. Mas acredito que em literatura há os exercícios de diálogos, de experimentar limites e serpenteamentos. Quanto a este último penso que há uma “linha” que dá vida aos textos literários. Quanto à poesia me agrada o fato que ela se utiliza na maioria das vezes das palavras remotas. As palavras imediatas têm, com observa Valery, muito poder. Creio que é por isso que Braque diz que escrever não é descrever.

Na pintura, as cores vizinhas e o tempo de observação são capazes de alterar a percepção de uma obra. Também na literatura, as obras vizinhas ou próximas e o tempo de apreensão (de amadurecimento) é capaz de alterar a percepção do leitor?

Quando leio romances, e sobretudo poesias, percebo como as palavras remotas têm a capacidade de uma ressonância que quanto mais amadurecemos, mais as percebemos como podem alterar a percepção do leitor. Talvez seja oportuno citar aqui uma frase de Júlio Castañon Guimarães de seu poema em prosa intitulado Friagem: “Do escuro então lhe perpassou pela pele, num raspão, algo como uma palavra remota.”

Geralmente você cita poesias que retratam seus questionamentos no estudo da pintura, considerando que ambas as artes refletem o que está "além do visível, e que só uma sensibilidade especial pode ver e fazer com que possamos vê-la". O que poesia e pintura mais têm em comum?

Voltemos ao Leonardo quando ele diz que a pintura é uma poesia muda. Mas como disse acima, que tem vida, assim como a poesia. O pintor ou poeta dão vida a suas obras, graças ao serpenteamento, às palavras ou espaços remotos, etc., muito embora não podermos descartar os espaços imediatos, muito presentes na arte contemporânea, e aqui completamos a frase de Braque citada acima:”Pintar não é representar.”

Você também sugere que boas telas e poesias devem ser provocações (provocações de ânimos, de reflexões). O que torna o trabalho do artista um produto da Arte? Seu momento prévio de inspiração, ou seu momento posterior de apreensão pelos múltiplos indivíduos espectadores/leitores?

Arte é uma coisa bem complexa e talvez ainda nem saibamos o que ela realmente é. Por isso talvez seja oportuno lembramos de Espinosa. Epistemologicamente ele fala dos três estados para alcançarmos um ponto mais abrangente. Diz ele que primeiro tomamos conhecimento das coisas. No segundo racionalizamo-nas. No terceiro ele se refere à intuição com conhecimento, ou seja, o momento que somos mais capazes de produzir do que criar, uma vez que para o filósofo na produção há a criação. Obviamente nesta última é importantíssimo a experiência, o amadurecimento, etc.

Termino, então, esta entrevista mostrando um quadro de minha autoria, realizado há mais de dez anos, denominado Esse Azul, quando já me sentia atraído por uma geometria das cores.

Orlando Mollica – Troca de emails


Mollica

Você, como sempre disse, me surpreende pelas mudanças e estas agora me pareceram bem radicais. Nunca imaginei você às voltas com naturezas mortas, ainda mais nos passando a impressão de que são produtos de uma longa maturação, de anos até. As questões espaciais que você procura resolver são bem complexas, pois temos simultaneamente um espaço lá, albertiano, perspectivado, já que o suporte é uma foto; um espaço ali, e neste prevalece a pintura, no qual os gestos têm uma enorme participação quando quase anulam os objetos representados com vigorosas pinceladas, (o banco da foto exemplifica bem isso com quase como uma mancha jogada ao acaso que desrespeita os contornos do objeto, com uma coloração avermelhada alaranjada e alguns semitons cobrindo o assento); e por último um espaço aqui, na medida que nos coloca como testemunhas no sentido de conciliador das contradições daquelas duas representações espaciais e aqui temos claro a utilização da lógica do terceiro incluído. Para mim é neste último que a cor tem seu papel mais curioso no trabalho. Você faz que nosso olho não se fixe em um determinado lugar dando-nos a liberdade de olharmos de acordo com o ritmo que escolhemos ou, se você quiser, nos permite ver pelos intervalos. Por exemplo, ainda o banco com a pincelada avermelhada alaranjado. Ao lado um azul claro, a cor oposta e logo acima uma mancha esbranquiçada. São muitas as cores de passagem e são essas que permitem vermos pelos intervalos sem nos perdermos das cores iniciais que mais ativam nossa percepção.

Como você mesmo diz, além do mais, é um olhar crítico para essas imagens espalhadas pelas luxuosas revistas de arquitetura e decoração dirigidas para um público específico, e por isso totalmente vazias para quem pretende usar um olhar prospectivo. Certamente, como subproduto do neoliberalismo, contenta-se em um olhar que considera o simples aspecto.

A partir daí, dessa sólida construção plástica, você permite nos fazer refletir, nos incentivando a estudar ao mostrar como vai se formando um nexo no nosso imaginário a partir do qual podemos compreender a complexidade cultural de nosso país, desde o período colonial até a contemporaneidade considerando, inclusive, os artistas estrangeiros que aqui aportaram no século XIX.

Um forte abraço

JM


Oi Zé

Grato pelos comentários. São sempre observações muito pessoais e por isso mesmo muito valiosas, porque se assentam num processo de reflexão sensível e vivencial com a imagem, afora o conhecimento teórico sólido adquirido após muitos anos de trabalho. Tudo isso, como sempre, com a sua marca pessoal, o que faz o comentário sair completamente do óbvio, de tudo o que não acrescenta nada, ou então de não ficar preso a uma cartilha qualquer considerada aquela que é importante no momento da moda atual, para meia dúzia de críticos com cabeças feitas de fora para dentro: críticos de ocasião.

O trabalho tem sido desenvolvido com muito empenho e sinceridade, evitando soluções fáceis, e considerando que tenho que lidar com a imagem fotográfica impressa para incluí-la como pintura, mesmo às custas de criar situações dentro de uma tradição ilusionista, que faço questão de enfatizar, até porque é parte intrínseca da história da pintura. Tratar o "campo pictórico" como um jogo complexo de modos de olhar foi uma das coisas que aprendemos com Leonardo, Manet, Monet, Gauguin, Cézanne, Braque e muitos outros. Todas as tentativas de acabar com a pintura passaram pelo discurso que desconhece o poder que se tem ao saber tratar do plano pictórico como um território povoado de virtualidades, de possibilidades. Tentar planarizá-lo ou tridimensionalizá-lo é de alguma forma uma renúncia àquilo que a pintura pode oferecer de melhor no campo das artes, além da sua especificidade. Atualmente estou pintando em grandes formatos, radicalizando essas experiências.

Forte abraço

Mollica

(Pedi ao Mollica que me enviasse um comentário sobre determinado quadro de Guignard que nos ajudará a mostrar como seu pensamento se articula.)

Zé,

Ai vai mais ou menos transcrito na forma em que escrevi na minha tese de doutorado sobre "A Família do Fuzileiro Naval”, Guignard, 1930:

Certamente é em Alberto da Veiga Guignard, em sua A Família do Fuzileiro Naval que o imaginário proveniente da obra de Gilberto Freyre aparece com toda sua vitalidade e limpidez. Nesse quadro, o pintor define basicamente dois planos distintos: o do interior e do exterior, do lado de fora da janela dupla de venezianas de um casarão com ares franceses, que insinua ser uma habitação típica da aristocracia que descende dos barões do café.

Alberto da Veiga Guignard - A família do fuzileiro naval – Col. Gilberto Chateaubriand.

No seu interior, confrontando o espectador, aparece uma família de mulatos, que posa de maneira hierática como o faziam as grandes famílias das elites brasileiras tradicionais e históricas, desde os tempos coloniais. Ao centro, Guignard pintou a pequena bandeira do Brasil, empunhada pelo menino e recortes da arquitetura da casa, delimitando os contornos com linhas retas , deixando transparecer ironicamente uma identidade cultural decalcada visualmente, porém recalcada, na prática. No fundo do quadro, no plano externo à casa, para além das janelas, se abre uma paisagem vaporosa, onde as coisas não tem contornos nítidos, quase onírica, lírica, cenográfica, sensual e idealizada como uma espécie de paraíso celestial, que contrasta violentamente com o arranjo do primeiro plano, quase geométrico do grupo familiar,contornado fortemente pelas linhas pretas, cuja formalidade e o engajamento das vestes pressupõe uma inserção social absolutamente ordenada.

Isso tudo aparentemente acontece porque a natureza artificialmente paradisíaca, a paisagem verde rósea do fundo, paradoxalmente, contamina e organiza plasticamente os personagens, atribuindo-lhes um caráter meramente, ou melhor, altamente alegórico: simulacro de uma cidadania que se dá apenas no plano virtual, de um país que, mesmo atravessando um período político de transformações profundas, quanto mais se moderniza, mais precisa se manter no passado para que se mantenha fiel à sua cultura, à forma como foi moldado pela colonização portuguesa.

O país apregoado por Freyre, mesmo que incorporando à sua identidade aspectos da miscigenação cultural, representada sob os mais diversos aspectos, como sendo a terra do "mulato inzoneiro" - como cantou Ary Barroso na sua Aquarela do Brasil, composto em 1939, e considerado pelo então ditador , Getúlio Vargas um ícone de brasilidade genuína, cooptada pelo seu desenho de nacionalismo, até porque se agregava adequadamente na sua política de inclusão das massas mestiças, pobres, desprovidas de qualquer tipo de cidadania e oriundas em sua grande maioria do campesinato. Pelo menos para Guignard neste quadro, o Brasil não conseguiu se estabelecer naquele tipo de presente que tentava representar sua modernização, e até pelo contrário, se paralisa numa perspectiva de um futuro, de uma virtualidade quase sobrenatural, antecipando visualmente a concepção do "Brasil, país do futuro", tal como foi enunciada por Stefan Zweig (1941): uma nação em permanente estado pretérito: um país transcendental.

Na visão de Guignard, dentro do contexto do quadro A Família do Fuzileiro Naval, o Brasil nunca poderá cortar completamente suas raízes coloniais. Quanto mais futuro tiver, mais no passado deverá se manter.

Eis o paradoxo que esse pintor genial nos legou.

Grande abraço

Mollica

Poema de Silvana Leal escrito a patir de um texto que é um resumo de meu livro.


Os acordes da Cor

Silvana Leal


a não-cor como ancoragem

terceiro tempo nada absoluto


a cor quer romper o tom

a cor se faz em tempos diversos

a cor cai de tempos em tempos


a cor amanhece clara

depois vibra como nunca

logo após vira sombra

linguagem cromática do tempo


a cor sagrada da alma - a arte

A Lagosta de Delacroix

Quem visita o Louvre encontra em uma das principais alas alguns quadros de Delacroix, entre eles um bastante citado por historiadores, críticos, etc., o quadro intitulado A Liberdade Guiando o Povo. Mas em outra ala, bem menor, vai se deparar com o quadro A Lagosta, pintura para pintores, infelizmente pouco conhecido e estudado. Esse quadro é fortíssimo. A vida e morte é o seu tema. Troquei algumas idéias com as amigas Elaine Pauvolid e Paula Laranjeira. Os comentários foram tão ricos que resolvi mostrar o quadro em meu blog para quem quiser estudá-lo possa fazê-lo.

Este texto é o resultado de conversas que mantive durante uma semana com Elaine Pauvolid, Paula Laranjeira e Orlando Mollica sobre um quadro de Dalacroix que eu denomino A Lagosta. Portanto eles são co-autores.

Nesse quadro de Delacroix há uma discussão bem complexa sobre a vida e a morte, e o curioso é que a morte, está representada pelos animais em primeiro plano: as lagostas, a lebre e os pássaros pintados em "cores vivas", menos um réptil anfíbio, uma salamandra, que esta viva. E a salamandra é um ser mítico que está bem presente no imaginário de alguns povos. No lado direito, abaixo, há um plano, com uma mancha escura acima, que pode ser um muro, e nosso olhar não consegue ir além dele. No lado esquerdo, em contraponto, há um outro espaço, este com linhas inclinadas, como se esboçasse um caminho que nos possibilitasse chegar ao segundo plano onde se nota, em tons mais brandos, bem distantes, uns cavaleiros, portanto, uma representação de coisas vivas. Curioso esse contraste. Há ainda as questões cromáticas. Predomina um contraste alaranjado-violáceo que potencializado faz surgir um esverdeado, e isso era teorizado pelo pintor que afirmava que na natureza tudo se resumia ao acorde laranja, verde e violeta. Repare que os esverdeados no quadro, menos evidentes, estão todos rompidos. Ganham alguma evidência induzidos pelos alaranjados e violáceos. Portanto o colorido se afirma e acaba, assim, dialogando com as formas e daí enfatiza o narrativo, mas deixando-o subordinado à plasticidade. Delacroix, me parece, nos aponta para o enigmático e, como já disse, nos faz pensar na nossa própria condição, ou no miserere, isto é, na imperfeição própria dos homens. Por isso que digo que é uma pintura para pintores. Curioso é se constatar que um dos quadros mais comentados e reproduzidos de Delacroix seja A Liberdade Guiando o Povo. Logo depois o pintor, desencantado, se refugia em seu atelier onde nunca mais pintou quadros panfletários.

Para terminar seguem umas frases retiradas de um e-mail que me foi enviado pelo artista plástico Orlando Mollica:


"É a forma romântica de se expressar ante a uma realidade política de esfacelamento social: uma Revolução que prometia tudo e que acabou muito mal.

Esse anti-climax que rolou no começo do século XIX e provocou, ou melhor, acirrou o ânimo dos românticos, abasteceu fortemente a criatividade desses artistas. Com Delacroix não foi diferente.

Mas, a bem da verdade, com o capitalismo ainda e cada vez mais forte e impiedoso, vide crise européia, USA, Oriente Médio, África, os milhões de miseráveis e desempregados espalhados desde o primeiro ao último mundo, e o planeta batendo pino, a atualidade de visões céticas e sinistras como a de Delacriox ainda são muito atuais."

José Maria Dias da Cruz

Abril - 2011

FORMULÁRIOS


Chardin, a poesia muda e a verdade em pintura


Chardin, que pintor complexo! Difícil falar-se de sua pintura. Mas há uma frase que pode nos permitir alguns comentários. Diz ele que o pintor tem que manter uma certa distância de seu modelo. Pensamos: se há uma aproximação o pintor pode se perder nos detalhes; se um afastamento, se perde da pintura; no devido lugar compreende a verdade da pintura. É curioso
observar suas pinceladas. Não demonstram um gesto, mas a objetividade ou realidade de uma pincelada, como que dissesse "isso é uma pincelada". O mesmo se pode dizer das cores: "isso não é a cor de um objeto, isso é uma
cor." Pouco importa que se muitas vezes muito esmaecida. Cézanne o compreendeu muito bem quando afirmou que "La nature se debrouille." A pintura por si só se organiza dentro de uma lógica. Uma figura, em um quadro de Chardin, nunca aparece inteira em muito de seus quadro, sobretudo naqueles pintados em sua maturidade. Um detalhe identificável, e a figura surge inteira. Há um quadro, uma cena interior. Uma empregada recostada em
um móvel, pousa levemente a mão sobre uns pães em cima do móvel. Na outra mão uma sacola com talvez uma ave morta. A saia é de um azulado esmaecido. A
sacola, os pães, a mão sobre eles pousada surgem pela identificação do rosto da empregada. O cômodo onde ela está, bem sombreado. Se liga por uma porta, pelo lado esquerdo a uma outra sala, mais iluminada. Entre uma sala e outra um filtro enorme em solene perfil, e penso em um objeto carregado de metáforas. Ou uma fronteira entre os dois espaços, o sombreado e o mais claro, filtro que elimina os recalques das sombras e ilumina as possíveis fantasias da empregada no primeiro plano de percepção. No fundo dessa sala contígua, perto de uma outra porta, uma talvez uma projeção da empregada,
conversa com um galanteador. Além desta porta um pedacinho mínimo de céu se apresenta como um limite do mundo dessa adorável empregada.

Uma aproximação de Chardin com o narrativo. O quadro em questão ilustra bem aquilo que Leonardo nos fala: "A pintura é uma poesia muda."

Penso que Chardin nos diz: não é, mas é, basta ver pelos intervalos. Por aí refere-se apenas à pintura, e nos faz pensar na sua verdade.

Noto que hoje há um interesse em Manet. Penso que para se estudar Manet tem que se começar por Chardin. Cézanne disse, diante das flores de Manet que ali estava a verdade da pintura. A verdade da pintura, como motivo da própria pintura, talvez comece em Chardin.

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO
O vernissage da exposição "As formas do colorido" e o lançamento do livro "O cormatismo cezanneano", de José Maria Dias da Cruz, se darão no dia 14 de Junho, às 19 horas. O endereço da Galeria TNT é; Estrada Barra da Tijuca, 1636 - Loja A - Itanhanguá. O telefone para mais informações é: 21 2495 5756. A exposição seguirá até o dia 28 de Junho de 2011.