O pensamento plástico de Juliana Scorza

A mulher derretida ainda não se desnudou

Juliana,
Acompanhe o que pretendo dizer frente a seu quadro. Ou melhor, como se eu estivesse pintando com os com os olhos. Vejamos a segunda figura à esquerda com um rosto mais iluminado próxima à borda superior. O cabelo é avermelhado, um rompimento de um vermelho intenso na borda à direita. Um vasto espaço plástico se cria entre esses dois acidentes. No ombro esquerdo dessa figura, um outro pequeno toque bem avermelhado. O rompimento desse vermelho contorna a figura e seus seios e segue até a base do quadro. Sobre esse rompimento traços descontínuos se transformam em uma linha serpenteante. Uma sutil e corajosa solução plástica. Vemos mais: do lado esquerdo, um traço abaixo do seio, e um outro traço, um prolongamento do cabelo da figura mais à esquerda. Desenha-se um braço que parece ser comum às duas figuras. Entre outras uma questão evidencia-se. Duas figuras? Ou uma só, com o outro lado de nossas vaidades? Vc nos leva a pensar no Eclesiastes.
Os muitos cuidados provocam sonhos e no muito falar, achar-se-á a loucura.
E tem mais, o contorno dessa figura que acima referimo-nos continua em seus desdobramentos. Abaixo do seio um rompimento do vermelho desce e vai além, deixa de ser o contorno da perna, para gerar, em baixo, um espaço comum às duas figuras, o vermelho ainda se rompendo no sentido de um escuro. Do lado direito um outro espaço, verde azulado claro, o oposto de um vermelho amarelado em valor alto.Uma oposição que gera outros intervalos. Movimentos concêntricos e excêntricos considerando-se o cinza sempiterno, este causa e feito dos coloridos, um pré ou pós fenômeno. As cores para esse cinza simultaneamente convergem e divergem possibilitando uma dimensão temporal. Quando os movimentos são excêntricos ganham cromaticidade, quando concêntricos rompem-se e perdem cromaticidade. Um colorido é, portanto, um processo de organização e desorganização.

Mais que uma questão topológica. E nem também o pensamento plástico ilustrando apenas um problema geométrico, submetendo a arte à ciência. O que está em jogo é a complexidade do demasiadamente humano e mais que isso, da vida e da morte.

Curioso se observar que temos os traços se transformando em linhas, estas serpenteando, e sobre este serpenteamento que anima o espaço plástico, e a manifestação de um cinza sempiterno graças ao rompimento. Uma cor se rompe quando se modifica pela sobreposição nela de sua oposta. No trajeto entre uma e outra há a passagem pelo cinza sempiterno, um ponto potencialmente ativo. Como ponto não existe, é apenas uma passagem. Daí nunca poder afirmar quando esse cinza é ele mesmo. Ao lado de um avermelhado é esverdeado. Ao lado de um esverdeado é avermelhado. Um intervalo como limite, pois não existe como fenômeno.

Já o serpenteamento é um conceito vinciano que diz que no limite de cada corpo há um outro que serpenteia.

Nosso olhar passa, então, a perceber pelos múltiplos intervalos. Vemos por eles. E aqui citamos o poeta Michael Palmer.

As diversas distâncias entre olho e pálpebra.

Esses movimentos concêntricos e excêntricos permitem o surgimento de vários espaços na parte de baixo do quadro. Vários traços transformando-se em linhas que animam um espaço serpenteante, gerando abstrações no sentido somente de nada figurarem algo do qual já temos um conceito, e por isso afirmamos que são concretos e fenômenos reais. Diremos, portanto, que as cores nesse seu quadro, Juliana, são concretas adjetivas. A condição destas é serem no colorido, não subsistem por si só, como as abstratas substantivas. Aqueles fenômenos, traços transformando-se em linhas serpenteantes, geram outros, ou seja, possibilidades de figurações, as várias pernas. Temos assim vários níveis de realidade, se considerarmos a lógica do terceiro incluído E daí, à zona do sagrado, do enigma. Uma solução que somente uma sensibilidade muito especial pode criar. Vc baudelairemente me responde com esse quadro aquilo que penso, também baudelairemente, das cores. Elas são, simultaneamente, o prazer e o pecado.

Você, Juliana, poeticamente nos leva a pensar e muito. Das questões mais vicerais de nossas de nossas almas, aos conflitos e injustiças sociais, dos ajustamentos culturais face às novas realidade, etc.

Olhamos o quadro, mas aquela figura insistentemente nos olha a nos desafiar. Uma esfinge, a permanência do enigma. Afinal que branco é aquele que teima em desviar e dividir nosso olhar, como se quisesse nos levar a uma ordem na qual nada mais veríamos, a uma lógica na qual permaneceríamos em um único nível de realidade.

Um branco obsessivo como nos versos de Dante Milano:
Uma coisa branca
Bem junto de mim

Para me sumir
Para me esquecer
Vida e morte. Voltamos a Leonardo que diz que o pintor, ao transpor para a superfície do suporte coisas vivas, mata-as por uma primeira vez. Pode matá-la por uma segunda vez se não se aperceber do serpentaeamento, e digo eu, do cinza sempiterno e ver, considerando uma dimensão temporal, pelos intervalos.

Ver - assim como um músico tão bem o faz com os sons - pelos intervalos.

Então surge Miguel de Torga a nos lembrar do Eterno Feminino.
Voltei, ninfas amigas!
Quem pode resistir a um fresco aceno
De donzelas despidas?
Fiel devoto da nudez da vida,
Tinha sede de ver-vos distraídas
A correr pela terra ressequida.

Serei criança, mas voltei de novo

Ao vosso altar sagrado.
Ou não fosse eu poeta!
Ou não me desse a imagem do passado
Uma esperança secreta...

Vim, e que o mundo murmure,

Ninfas de cada fonte!
Que me importa que digam que enlouqueço
Junto de vós?
Quero é beijar-vos, é beber,
E sentir-me no fim purificado...
Só deusas verdadeiras podem ter
Um corpo tão perfeito e tão lavado.
Abraços JM

Ver e ouvir – Philip Glass


Esses textos - tenho outros - são desenvolvimentos naturais de minhas notações, desde os tempos dos Formulários até os desenhos mais recentes. Com isso posso me colocar como artista marginal, conforme definido por Sergio Milliet em seu livro Marginalidade no Modernismo. A questão pode ir mais longe face à frase bem conhecida: a arte imita a vida, e faz desta arte um fenômeno cultural, segundo pensava Eliot.)


Ver e ouvir

Há dias venho escavando meus pensamentos, e uma frase surgiu de repente, pronta.
Estou cansado de ficar cansado - oh dias atribulados de tantos vazios -, hoje o dia foi de expectativa, e o sol nasceu e se pôs, e entre o nascente e poente choveu como uma lágrima que escorresse do céu.
Mandei-a a minha amiga Cristina Pape e recebi uma resposta animadora.

"Oi Ze Maria, frases poéticas são reflexos em poças d'água.
Pulamos algumas, pisamos em outras e sempre elas são gotas concentradas."
Lembrei-me de Redon que diz que devemos evitar o literário em pintura, a não ser que seja um poema. Lembrei-me de Leonardo também. Da questão do serpenteamento. Este se refere aos limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam. Frase instigante, então dentro de um limite há outro que serpenteia? Põe assim em discussão o contorno dos objetos.
Cézanne mais tarde vai dizer que as linhas não existem em absoluto, são abstrações,.e que na natureza tudo está colorido. Diz mais ainda, devemos ver a natureza como ninguém a viu antes.

Ficamos, então, face à face a uma série de enigmas. Sentimo-nos que a arte é como um vôo de um pássaro. Como aquele pintado por Braque no teto de uma ala do Louvre.

Ou então, ao Eclesiastes.

O fato é que estava ouvindo uma música de Phiplip Glass e vendo as imagens. O serpenteamento se manifestou. E alguma coisa que nunca vimos antes e nem ouvimos, se fez presente. Observe-se bem. "O olho não se farta de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir." Está assim dito no Eclesiastes. E em cada coisa que se vê, e em cada coisa que se ouve, tudo é simples. Impressionante como as fotos são despretensiosas. Vemo-las como se estivéssemos acordando, e tudo se parece, no início, como imagens com uma estética desconhecida, únicas, que não se nos dão ao diálogo, pois que sem seus respectivos complementos. Como nos diz Raul de Leone. "Eu era uma alma fácil e macia, claro e sereno espelho matinal." Do sol que nasce e se põe e que torna a nascer. A vida se desenha. Da rosa vermelha da manhã (nela tudo é vaidade?), à outra, abandonada e murcha em uma banqueta à tarde. O amor profano que se acabou? Pelo amor sagrado as joaninhas se reproduzem. Os gaviões espreitam, o gato olha a ave sobre os ovos coloridos, uma mão oferta uma borboleta morta e, em outro momento, em um dedo como um trampolim, a borboleta se prepara para seu novo vôo. Uma mão se estende - pedindo ajuda? Há a estrada gelada e há a cerca que permite uma passagem. Vêm-se as marcas dos pneus, e a imagem do carro, sujo, desconfortável, tão anticomercial! Do pé ao pneu passando pelo sapato. E é Braque quem nos diz; “O conceito obnubila. Foi somente após profundas meditações que o homem bebeu do vazio de suas mãos. (Da mão ao copo passando pela concha). Aqui é bem mais uma metamorfose que uma metáfora." O tempo passa como um rio. De repente uma outra imagem, uma estrela-coração? "Há tempo de guerra e tempo de paz." As cores se multiplicam. Os galhos secam, como em certos quadros de Mondrian, uma desordem que antecede à ordem, (e depois florescem, gráficas e improvisadas, em ritmo de jazz). Há as inúteis máscaras, como as que nos cantou Dante Milano: "Até que a terra, com sua garra, nos rasgue a máscara." É o vício de viver? Das uvas ao vinho que embriaga, das papoulas ao ópio, como nos versos de Baudelaire. "O ópio dilata o que contornos não tem mais, aprofunda o ilimitado, alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado, e de prazeres sensuais enche a alma para além do que conter lhe é dado." É tudo vaidade. A flor amarela prenuncia a morte, a as ferragens violáceas um fim e um recomeço. O cinza sempiterno se manifesta na natureza e nos expõe o enigma, este que só um espírito sagaz nele se embriaga, mas pela metade apenas, tentando compreendê-lo. Curiosa uma foto de uma moça em frente ao espelho e nele mal se vê o fotógrafo. Van Eyck revisitado?
"O que é o que foi? O mesmo que há de ser. Que é que se fez? O mesmo que se há de fazer. Não há nada de novo debaixo do sol e ninguém pode dizer: Eis aqui está uma coisa nova, porque ela já existiu nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não haverá memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde." O que pertence também ao Eclesiastes.

Mas uma pergunta persiste. A arte, como disse Cézanne, é quase uma religião? E Deus, é nosso direito? "Vem, pois, agora, rogo-te..."
(Números, 22-6). "Vai,vai, vai, disse o pássaro, o homem não suporta tanta realidade." T.S.Eliot.

Ouçam e vejam. Percebam as histórias infinitas que a música e as imagens nos contam. Depois me respondam.

http://www.youtube.com/watch?v=uHn8L3dYMLM&feature=related

Um adendo

Na sequência de fotos que acompanha a música do P G, na terceira ou quarta mostrada, tem um detalhe curioso. A foto mostra dois círculos: um bem azulado, outro, menos. Por ele pensamos no cinza sempiterno. Veja, Leonardo diz que o azul tanto pode ser uma cor simples como composta. No segundo caso seria composta de luzes, ou de brancos para as luzes, e de sombras, ou de pretos para as sombras. Este azul pode estar no intervalo entre um branco como cor e de seu oposto, um preto. O mesmo intervalo para as demais cores e suas respectivas opostas. o cinza sempiterno como um pré ou pós fenômeno.

FORMULÁRIOS


Chardin, a poesia muda e a verdade em pintura


Chardin, que pintor complexo! Difícil falar-se de sua pintura. Mas há uma frase que pode nos permitir alguns comentários. Diz ele que o pintor tem que manter uma certa distância de seu modelo. Pensamos: se há uma aproximação o pintor pode se perder nos detalhes; se um afastamento, se perde da pintura; no devido lugar compreende a verdade da pintura. É curioso
observar suas pinceladas. Não demonstram um gesto, mas a objetividade ou realidade de uma pincelada, como que dissesse "isso é uma pincelada". O mesmo se pode dizer das cores: "isso não é a cor de um objeto, isso é uma
cor." Pouco importa que se muitas vezes muito esmaecida. Cézanne o compreendeu muito bem quando afirmou que "La nature se debrouille." A pintura por si só se organiza dentro de uma lógica. Uma figura, em um quadro de Chardin, nunca aparece inteira em muito de seus quadro, sobretudo naqueles pintados em sua maturidade. Um detalhe identificável, e a figura surge inteira. Há um quadro, uma cena interior. Uma empregada recostada em
um móvel, pousa levemente a mão sobre uns pães em cima do móvel. Na outra mão uma sacola com talvez uma ave morta. A saia é de um azulado esmaecido. A
sacola, os pães, a mão sobre eles pousada surgem pela identificação do rosto da empregada. O cômodo onde ela está, bem sombreado. Se liga por uma porta, pelo lado esquerdo a uma outra sala, mais iluminada. Entre uma sala e outra um filtro enorme em solene perfil, e penso em um objeto carregado de metáforas. Ou uma fronteira entre os dois espaços, o sombreado e o mais claro, filtro que elimina os recalques das sombras e ilumina as possíveis fantasias da empregada no primeiro plano de percepção. No fundo dessa sala contígua, perto de uma outra porta, uma talvez uma projeção da empregada,
conversa com um galanteador. Além desta porta um pedacinho mínimo de céu se apresenta como um limite do mundo dessa adorável empregada.

Uma aproximação de Chardin com o narrativo. O quadro em questão ilustra bem aquilo que Leonardo nos fala: "A pintura é uma poesia muda."

Penso que Chardin nos diz: não é, mas é, basta ver pelos intervalos. Por aí refere-se apenas à pintura, e nos faz pensar na sua verdade.

Noto que hoje há um interesse em Manet. Penso que para se estudar Manet tem que se começar por Chardin. Cézanne disse, diante das flores de Manet que ali estava a verdade da pintura. A verdade da pintura, como motivo da própria pintura, talvez comece em Chardin.

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO
O vernissage da exposição "As formas do colorido" e o lançamento do livro "O cormatismo cezanneano", de José Maria Dias da Cruz, se darão no dia 14 de Junho, às 19 horas. O endereço da Galeria TNT é; Estrada Barra da Tijuca, 1636 - Loja A - Itanhanguá. O telefone para mais informações é: 21 2495 5756. A exposição seguirá até o dia 28 de Junho de 2011.