De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?, 1897 Mus. de Belas-Artes - Boston
Gauguin, Cézanne e uma geometria das cores
Gauguin disse que as cores são enigmáticas e pintou o quadro De onde viemos, o que somos e para onde iremos. Cézanne fez referência a um cinza que reina em toda a natureza e que pintava sempre uma secção do espaço. Talvez desenha-se, assim, uma geometria das cores.
O cinza onipresente, os cinzas sempiternos e sua lógica e os acasos, as várias dimensões das cores, a questão de uma centralidade não absoluta, os rompimentos dos tons, os contrastes considerando uma dinâmica cromática, harmonias e desarmonias, o serpenteamento, as cores abstratas substantivas e concretas adjetivas, podem nos levar a algumas reflexões. Consideramos as várias geometrias conhecidas e aquelas que, pelo acaso, hão de vir.
Na década de sessenta do século passado disse que uma realidade poderia se desdobrar em outras. Surgiram os quadros os quais denominei formulários. As cores eram timidamente pensadas graças às impressões que tive, dez anos antes, quando pela primeira vez vi ao vivo quadros de Poussin, Cézanne e Braque. Dez anos depois essas idéias se adensaram. Disse, então, que pelos diversos desdobramentos de uma realidade chegar-se-ia a um estado de confusão em nossos pensamentos tais que o acaso seria o limite desses pensamentos. A geometria dos fractais, que veio à tona em 1978, e a teoria do caos ainda eram desconhecidas do grande público. Foram divulgadas para os leigos em 1980. Pintei naturezas mortas considerando essas minhas observações. Na década de oitenta, mais próximo daqueles três grandes artistas, pensei no cinza sempiterno, já inteiramente interessado nos fenômenos cromáticos. Hoje penso em uma geometria das cores.
Vejamos, há o cinza onipresente que contém todos os coloridos, cinza esse que nos é interditado. Resta-nos um cinza sempiterno, causa e efeito dos coloridos. Um colorido, portanto, é uma fração e dele podemos dizer que, como fração, é maior que o todo. Como as cores possuem várias dimensões diremos que elas estão sempre se auto organizando dentro de um colorido. Acontecimentos ao acaso participam dessa auto organização, pois um colorido, pela sua dinâmica própria, pode gerar outros cinzas sempiternos, ou seja, outros fracionamentos em seu interior. Os acasos seriam, portanto, as novas convivências cromáticas que surgiriam da necessidade dessa auto organização e do surgimento de outros cinzas sempiternos. Digamos, novas cores que participariam do colorido em determinado nível de realidade. Há um limite, entretanto, pois essa auto organização se encaminharia para o cinza onipresente que, como dissemos, nos é interditado. Dependendo de nós como testemunhas, se desorganizam. Somos levados a escolher algumas poucas cores decorrentes do acaso para não nos perdermos, para evitarmos um fim prematuro. Daí falar do acaso da última pincelada e citar Cézanne quando ele afirma que a harmonia se dá por si só. Um novo processo semelhante de auto organização se inicia, uma outra realidade. E assim sucessivamente até onde nossos sentidos são capazes de suportar. A vida de um colorido depende de seu princípio, o cinza onipresente e de seu fim, sua própria morte, como uma existência que nos é dada. Volto a citar Braque: “É o acaso que nos revela a existência.” Transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan retirada de seu livro, Entre o Cristal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro.
[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças de desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética , mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.
Para nós este cinza sempiterno pode ser o princípio e o fim pois é, como vimos, um pré ou pós fenômeno. Princípio quando intuímos que dele surgem os coloridos. Fim, quando nossos sentidos não mais nos permitem os acasos. Compreendemos Baudelaire quando ele se refere ao prazer e ao pecado. Apoiados nessa referência diremos que as cores são simultaneamente o prazer e o pecado. O fim (ou o princípio?) dos acasos coincide com o nosso fim: a nossa morte. Pelas cores podemos refletir sobre a ética. O nosso esforço para não nos perdermos no colorido tem um sentido ético. O enigma, entretanto, permanece.