Trecho de um e-mail do Milton Machado para mim. Desse vídeo abaixo citado foram retiradas as fotos que agora comento.
“Tem um vídeo que se chama PINTURA. As imagens são de umas câmeras/salas de pintura com tintas líquidas de peças industriais. Um fundo de uns 3 x 5 m, com uma densa e profunda camada de graxa preta cheia de sulcos verticais, sobre a qual escorrem tintas, que marcam e colorem essa superfície com imagens fortuitas muito belas. E, como se não bastasse tanta beleza pictórica, corre uma cascata de água, lavando a "pintura" o tempo todo, produzindo os sulcos, e respingos, e brilhos e reflexos. Rapaz, é bonito demais, e poucos pintores seriam capazes de pintar imagens tão belas quanto aquelas, que podem lembrar um Iberê, mesmo um nosso querido Braque. Estou muito contente com o resultado.
Não sei de nada também. Quem sabe é porque se engana. De cabeça fria não nasce flor. Ainda mais mariasemvergonha.”
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Minha resposta:
Caro Milton
Como disse fiquei impressinadíssimo com as fotos. O escrito já está pronto na minha cabeça, mas confesso que não será imediatamente transcrito. Estou muito cansado. Trabalhando muito, e por sorte vc não está me vendo. Passo horas sentado sem nenhum gesto, salvo aqueles naturais, respiração, por exemplo. Ou deitado e idem. Às vezes caminhando, e além do gesto da respiração, alguns passos. Mas dentro da cabeça! Acrobacias inimagináveis! Pintar um quadro, por enquanto nada. Mas meus olhos ainda são de um pintor. Por eles escrevo.
O fato é que seu trabalho me servirá para as aulas. Estou discutindo o que é um quadro hoje
(ou pintura).
Um pequeno resumo. O seu trabalho não é um quadro. O axioma da não contradição é respeitado. Um não quadro não é um quadro. Por aí temos um único nível de percepção e realidade. A lógica aristotélica permanece. Uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente.
À minha frente vejo, entretanto, pelas fotos, a imagem de um quadro. Temos, então, um outro nível de percepção e realidade. Seu trabalho é um quadro. O axioma da não contradição é respeitado. Um quadro não é um não quadro. Mas vc vai além.
Aqui vale citar Poussin que diz: ou vemos simplesmente, e ver simplesmente é apenas considerar o objeto.
Neste caso vemo-lo por dentro.
Ou vemos prospectivamente, e nesse caso três coisas têm que ser consideradas:
o saber do olho; as diversas distâncias e os eixos visuais.
Portanto já podemos pensar a partir da lógica do terceiro incluído.
Neste caso através de um terceiro termo sem ferir o axioma da não contradição.
Temos, a partir do olhar prospectivo que nos propõe Poussin, no mínimo, dois níveis de percepção e realidade. Se considerarmos esse olhar prospectivo, outros níveis de percepção e realidade, nunca ferindo o princípio da contradição, são possíveis.
Em meus estudos sobre as cores o terceiro termo pode ser, tenho que pensar mais, o cinza sempiterno que permite uma dimensão temporal. Um olhar que permite uma percepção pelos intervalos.
No seu, olhares que excluem dos objetos seus respectivos valores absolutos e as classificações estratificadas. Vale dizer, um objeto, sem um valor absoluto, pode permitir percepções além de seu simples aspecto. Além do mais sua condição depende do contexto onde se encontra. Não existe por si só. Aquela questão que já conversamos: temos que vê-lo por fora para compreendê-lo. Dependendo do que está fora o que está dentro se modifica.
De qualquer forma podemos dizer que um quadro é cobrir uma superfície com uma cor. E podemos fazê-lo usando pincéis. No seu caso não se usou pincéis, mas as pincelada podem aparecer. Rastros de pinceladas se fazendo O eterno presente?
Nas diversas distâncias, por exemplo, temos o que vc defende, distâncias em proximidade. Nos eixos visuais o que Cézanne nos adverte; as horizontais dão a extensão, as verticais, a profundidade. O espaço plástico torna-se multidimensional. Pode ter menos de 3 dimensões e mais de duas. E por aí vai.
Pela citação de Francisco Inácio Peixoto, este grande contista que participou nos primórdios de nosso modernismos do movimento Verde, acontecido na pequena cidade mineira, Cataguases ("Sonhava e o sonho, desdobrando-se em mil facetas coloridas, prejudicava-me o sono e a
vida. Vinha o desvario, vinha a hesitação e, entre hesitações e desvarios, passei dias.") a obra é iluminada por um raio poético, conforme nos aconselha Braque.
Repare, Duchamp também está presente: um objeto encontrado que se transforma.
José Maria Dias da Cruz
Florianópolis, 2009