conseguir que cor e forma se tornassem simultâneos o tenha permitido dar ao desenho uma autonomia, tantos foram os estudos por ele realizados nesse procedimento. Afasta-se, dessa forma, ao que Vasari preconizava, ao afirmar que o desenho era o pai das três artes, a pintura, a escultura e a arquitetura. Tem aquela famosa frase na qual ele diz que a medida que pintamos, desenhamos, etc. Penso que nos desenhos de Cézanne o principal mesmo é o serpenteamento vinciano. Aquilo que discuto, o importante em Leonardo é pensar teoricamente o contorno dos objetos como serpenteamentos. Apenas dizer que ele introduziu o esfumato não é uma questão teórica, mas um simples procedimento. E assim vejo que os desenhos de Cézanne se ocupam mais de uma construção de um espaço do que uma representação de figuras ou formas. Parafraseando o mestre podemos fizer que na medida em que o espaço vai se construindo, as formas vão se consolidando.
O desenho em Cézanne
conseguir que cor e forma se tornassem simultâneos o tenha permitido dar ao desenho uma autonomia, tantos foram os estudos por ele realizados nesse procedimento. Afasta-se, dessa forma, ao que Vasari preconizava, ao afirmar que o desenho era o pai das três artes, a pintura, a escultura e a arquitetura. Tem aquela famosa frase na qual ele diz que a medida que pintamos, desenhamos, etc. Penso que nos desenhos de Cézanne o principal mesmo é o serpenteamento vinciano. Aquilo que discuto, o importante em Leonardo é pensar teoricamente o contorno dos objetos como serpenteamentos. Apenas dizer que ele introduziu o esfumato não é uma questão teórica, mas um simples procedimento. E assim vejo que os desenhos de Cézanne se ocupam mais de uma construção de um espaço do que uma representação de figuras ou formas. Parafraseando o mestre podemos fizer que na medida em que o espaço vai se construindo, as formas vão se consolidando.
Acompanhe o que pretendo dizer frente a seu quadro. Ou melhor, como se eu estivesse pintando com os com os olhos. Vejamos a segunda figura à esquerda com um rosto mais iluminado próxima à borda superior. O cabelo é avermelhado, um rompimento de um vermelho intenso na borda à direita. Um vasto espaço plástico se cria entre esses dois acidentes. No ombro esquerdo dessa figura, um outro pequeno toque bem avermelhado. O rompimento desse vermelho contorna a figura e seus seios e segue até a base do quadro. Sobre esse rompimento traços descontínuos se transformam em uma linha serpenteante. Uma sutil e corajosa solução plástica. Vemos mais: do lado esquerdo, um traço abaixo do seio, e um outro traço, um prolongamento do cabelo da figura mais à esquerda. Desenha-se um braço que parece ser comum às duas figuras. Entre outras uma questão evidencia-se. Duas figuras? Ou uma só, com o outro lado de nossas vaidades? Vc nos leva a pensar no Eclesiastes.
Os muitos cuidados provocam sonhos e no muito falar, achar-se-á a loucura.E tem mais, o contorno dessa figura que acima referimo-nos continua em seus desdobramentos. Abaixo do seio um rompimento do vermelho desce e vai além, deixa de ser o contorno da perna, para gerar, em baixo, um espaço comum às duas figuras, o vermelho ainda se rompendo no sentido de um escuro. Do lado direito um outro espaço, verde azulado claro, o oposto de um vermelho amarelado em valor alto.Uma oposição que gera outros intervalos. Movimentos concêntricos e excêntricos considerando-se o cinza sempiterno, este causa e feito dos coloridos, um pré ou pós fenômeno. As cores para esse cinza simultaneamente convergem e divergem possibilitando uma dimensão temporal. Quando os movimentos são excêntricos ganham cromaticidade, quando concêntricos rompem-se e perdem cromaticidade. Um colorido é, portanto, um processo de organização e desorganização.
Mais que uma questão topológica. E nem também o pensamento plástico ilustrando apenas um problema geométrico, submetendo a arte à ciência. O que está em jogo é a complexidade do demasiadamente humano e mais que isso, da vida e da morte.
Curioso se observar que temos os traços se transformando em linhas, estas serpenteando, e sobre este serpenteamento que anima o espaço plástico, e a manifestação de um cinza sempiterno graças ao rompimento. Uma cor se rompe quando se modifica pela sobreposição nela de sua oposta. No trajeto entre uma e outra há a passagem pelo cinza sempiterno, um ponto potencialmente ativo. Como ponto não existe, é apenas uma passagem. Daí nunca poder afirmar quando esse cinza é ele mesmo. Ao lado de um avermelhado é esverdeado. Ao lado de um esverdeado é avermelhado. Um intervalo como limite, pois não existe como fenômeno.
Já o serpenteamento é um conceito vinciano que diz que no limite de cada corpo há um outro que serpenteia.
Nosso olhar passa, então, a perceber pelos múltiplos intervalos. Vemos por eles. E aqui citamos o poeta Michael Palmer.
As diversas distâncias entre olho e pálpebra.
Você, Juliana, poeticamente nos leva a pensar e muito. Das questões mais vicerais de nossas de nossas almas, aos conflitos e injustiças sociais, dos ajustamentos culturais face às novas realidade, etc.
Olhamos o quadro, mas aquela figura insistentemente nos olha a nos desafiar. Uma esfinge, a permanência do enigma. Afinal que branco é aquele que teima em desviar e dividir nosso olhar, como se quisesse nos levar a uma ordem na qual nada mais veríamos, a uma lógica na qual permaneceríamos em um único nível de realidade.
Um branco obsessivo como nos versos de Dante Milano:
Uma coisa branca
Bem junto de mim
Para me sumir
Para me esquecer
Ver - assim como um músico tão bem o faz com os sons - pelos intervalos.
Então surge Miguel de Torga a nos lembrar do Eterno Feminino.
Voltei, ninfas amigas!Abraços JM
Quem pode resistir a um fresco aceno
De donzelas despidas?
Fiel devoto da nudez da vida,
Tinha sede de ver-vos distraídas
A correr pela terra ressequida.
Serei criança, mas voltei de novo
Ao vosso altar sagrado.
Ou não fosse eu poeta!
Ou não me desse a imagem do passado
Uma esperança secreta...
Vim, e que o mundo murmure,
Ninfas de cada fonte!
Que me importa que digam que enlouqueço
Junto de vós?
Quero é beijar-vos, é beber,
E sentir-me no fim purificado...
Só deusas verdadeiras podem ter
Um corpo tão perfeito e tão lavado.
Ver e ouvir – Philip Glass
Esses textos - tenho outros - são desenvolvimentos naturais de minhas notações, desde os tempos dos Formulários até os desenhos mais recentes. Com isso posso me colocar como artista marginal, conforme definido por Sergio Milliet em seu livro Marginalidade no Modernismo. A questão pode ir mais longe face à frase bem conhecida: a arte imita a vida, e faz desta arte um fenômeno cultural, segundo pensava Eliot.)
Ver e ouvir
Há dias venho escavando meus pensamentos, e uma frase surgiu de repente, pronta.
Estou cansado de ficar cansado - oh dias atribulados de tantos vazios -, hoje o dia foi de expectativa, e o sol nasceu e se pôs, e entre o nascente e poente choveu como uma lágrima que escorresse do céu.
Mandei-a a minha amiga Cristina Pape e recebi uma resposta animadora.
"Oi Ze Maria, frases poéticas são reflexos em poças d'água.Lembrei-me de Redon que diz que devemos evitar o literário em pintura, a não ser que seja um poema. Lembrei-me de Leonardo também. Da questão do serpenteamento. Este se refere aos limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam. Frase instigante, então dentro de um limite há outro que serpenteia? Põe assim em discussão o contorno dos objetos.
Pulamos algumas, pisamos em outras e sempre elas são gotas concentradas."
Cézanne mais tarde vai dizer que as linhas não existem em absoluto, são abstrações,.e que na natureza tudo está colorido. Diz mais ainda, devemos ver a natureza como ninguém a viu antes.
Ficamos, então, face à face a uma série de enigmas. Sentimo-nos que a arte é como um vôo de um pássaro. Como aquele pintado por Braque no teto de uma ala do Louvre.
Ou então, ao Eclesiastes.
O fato é que estava ouvindo uma música de Phiplip Glass e vendo as imagens. O serpenteamento se manifestou. E alguma coisa que nunca vimos antes e nem ouvimos, se fez presente. Observe-se bem. "O olho não se farta de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir." Está assim dito no Eclesiastes. E em cada coisa que se vê, e em cada coisa que se ouve, tudo é simples. Impressionante como as fotos são despretensiosas. Vemo-las como se estivéssemos acordando, e tudo se parece, no início, como imagens com uma estética desconhecida, únicas, que não se nos dão ao diálogo, pois que sem seus respectivos complementos. Como nos diz Raul de Leone. "Eu era uma alma fácil e macia, claro e sereno espelho matinal." Do sol que nasce e se põe e que torna a nascer. A vida se desenha. Da rosa vermelha da manhã (nela tudo é vaidade?), à outra, abandonada e murcha em uma banqueta à tarde. O amor profano que se acabou? Pelo amor sagrado as joaninhas se reproduzem. Os gaviões espreitam, o gato olha a ave sobre os ovos coloridos, uma mão oferta uma borboleta morta e, em outro momento, em um dedo como um trampolim, a borboleta se prepara para seu novo vôo. Uma mão se estende - pedindo ajuda? Há a estrada gelada e há a cerca que permite uma passagem. Vêm-se as marcas dos pneus, e a imagem do carro, sujo, desconfortável, tão anticomercial! Do pé ao pneu passando pelo sapato. E é Braque quem nos diz; “O conceito obnubila. Foi somente após profundas meditações que o homem bebeu do vazio de suas mãos. (Da mão ao copo passando pela concha). Aqui é bem mais uma metamorfose que uma metáfora." O tempo passa como um rio. De repente uma outra imagem, uma estrela-coração? "Há tempo de guerra e tempo de paz." As cores se multiplicam. Os galhos secam, como em certos quadros de Mondrian, uma desordem que antecede à ordem, (e depois florescem, gráficas e improvisadas, em ritmo de jazz). Há as inúteis máscaras, como as que nos cantou Dante Milano: "Até que a terra, com sua garra, nos rasgue a máscara." É o vício de viver? Das uvas ao vinho que embriaga, das papoulas ao ópio, como nos versos de Baudelaire. "O ópio dilata o que contornos não tem mais, aprofunda o ilimitado, alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado, e de prazeres sensuais enche a alma para além do que conter lhe é dado." É tudo vaidade. A flor amarela prenuncia a morte, a as ferragens violáceas um fim e um recomeço. O cinza sempiterno se manifesta na natureza e nos expõe o enigma, este que só um espírito sagaz nele se embriaga, mas pela metade apenas, tentando compreendê-lo. Curiosa uma foto de uma moça em frente ao espelho e nele mal se vê o fotógrafo. Van Eyck revisitado?
"O que é o que foi? O mesmo que há de ser. Que é que se fez? O mesmo que se há de fazer. Não há nada de novo debaixo do sol e ninguém pode dizer: Eis aqui está uma coisa nova, porque ela já existiu nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não haverá memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde." O que pertence também ao Eclesiastes.
Mas uma pergunta persiste. A arte, como disse Cézanne, é quase uma religião? E Deus, é nosso direito? "Vem, pois, agora, rogo-te..."
(Números, 22-6). "Vai,vai, vai, disse o pássaro, o homem não suporta tanta realidade." T.S.Eliot.
Ouçam e vejam. Percebam as histórias infinitas que a música e as imagens nos contam. Depois me respondam.
http://www.youtube.com/watch?v=uHn8L3dYMLM&feature=related
Um adendo
Na sequência de fotos que acompanha a música do P G, na terceira ou quarta mostrada, tem um detalhe curioso. A foto mostra dois círculos: um bem azulado, outro, menos. Por ele pensamos no cinza sempiterno. Veja, Leonardo diz que o azul tanto pode ser uma cor simples como composta. No segundo caso seria composta de luzes, ou de brancos para as luzes, e de sombras, ou de pretos para as sombras. Este azul pode estar no intervalo entre um branco como cor e de seu oposto, um preto. O mesmo intervalo para as demais cores e suas respectivas opostas. o cinza sempiterno como um pré ou pós fenômeno.
O que é um quadro hoje?
Trecho de um e-mail do Milton Machado para mim. Desse vídeo abaixo citado foram retiradas as fotos que agora comento.
“Tem um vídeo que se chama PINTURA. As imagens são de umas câmeras/salas de pintura com tintas líquidas de peças industriais. Um fundo de uns 3 x 5 m, com uma densa e profunda camada de graxa preta cheia de sulcos verticais, sobre a qual escorrem tintas, que marcam e colorem essa superfície com imagens fortuitas muito belas. E, como se não bastasse tanta beleza pictórica, corre uma cascata de água, lavando a "pintura" o tempo todo, produzindo os sulcos, e respingos, e brilhos e reflexos. Rapaz, é bonito demais, e poucos pintores seriam capazes de pintar imagens tão belas quanto aquelas, que podem lembrar um Iberê, mesmo um nosso querido Braque. Estou muito contente com o resultado.
Não sei de nada também. Quem sabe é porque se engana. De cabeça fria não nasce flor. Ainda mais mariasemvergonha.”
____________________________
Minha resposta:
Caro Milton
Como disse fiquei impressinadíssimo com as fotos. O escrito já está pronto na minha cabeça, mas confesso que não será imediatamente transcrito. Estou muito cansado. Trabalhando muito, e por sorte vc não está me vendo. Passo horas sentado sem nenhum gesto, salvo aqueles naturais, respiração, por exemplo. Ou deitado e idem. Às vezes caminhando, e além do gesto da respiração, alguns passos. Mas dentro da cabeça! Acrobacias inimagináveis! Pintar um quadro, por enquanto nada. Mas meus olhos ainda são de um pintor. Por eles escrevo.
O fato é que seu trabalho me servirá para as aulas. Estou discutindo o que é um quadro hoje
(ou pintura).
Um pequeno resumo. O seu trabalho não é um quadro. O axioma da não contradição é respeitado. Um não quadro não é um quadro. Por aí temos um único nível de percepção e realidade. A lógica aristotélica permanece. Uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente.
À minha frente vejo, entretanto, pelas fotos, a imagem de um quadro. Temos, então, um outro nível de percepção e realidade. Seu trabalho é um quadro. O axioma da não contradição é respeitado. Um quadro não é um não quadro. Mas vc vai além.
Aqui vale citar Poussin que diz: ou vemos simplesmente, e ver simplesmente é apenas considerar o objeto.
Neste caso vemo-lo por dentro.
Ou vemos prospectivamente, e nesse caso três coisas têm que ser consideradas:
o saber do olho; as diversas distâncias e os eixos visuais.
Portanto já podemos pensar a partir da lógica do terceiro incluído.
Neste caso através de um terceiro termo sem ferir o axioma da não contradição.
Temos, a partir do olhar prospectivo que nos propõe Poussin, no mínimo, dois níveis de percepção e realidade. Se considerarmos esse olhar prospectivo, outros níveis de percepção e realidade, nunca ferindo o princípio da contradição, são possíveis.
Em meus estudos sobre as cores o terceiro termo pode ser, tenho que pensar mais, o cinza sempiterno que permite uma dimensão temporal. Um olhar que permite uma percepção pelos intervalos.
No seu, olhares que excluem dos objetos seus respectivos valores absolutos e as classificações estratificadas. Vale dizer, um objeto, sem um valor absoluto, pode permitir percepções além de seu simples aspecto. Além do mais sua condição depende do contexto onde se encontra. Não existe por si só. Aquela questão que já conversamos: temos que vê-lo por fora para compreendê-lo. Dependendo do que está fora o que está dentro se modifica.
De qualquer forma podemos dizer que um quadro é cobrir uma superfície com uma cor. E podemos fazê-lo usando pincéis. No seu caso não se usou pincéis, mas as pincelada podem aparecer. Rastros de pinceladas se fazendo O eterno presente?
Nas diversas distâncias, por exemplo, temos o que vc defende, distâncias em proximidade. Nos eixos visuais o que Cézanne nos adverte; as horizontais dão a extensão, as verticais, a profundidade. O espaço plástico torna-se multidimensional. Pode ter menos de 3 dimensões e mais de duas. E por aí vai.
Pela citação de Francisco Inácio Peixoto, este grande contista que participou nos primórdios de nosso modernismos do movimento Verde, acontecido na pequena cidade mineira, Cataguases ("Sonhava e o sonho, desdobrando-se em mil facetas coloridas, prejudicava-me o sono e a
vida. Vinha o desvario, vinha a hesitação e, entre hesitações e desvarios, passei dias.") a obra é iluminada por um raio poético, conforme nos aconselha Braque.
Repare, Duchamp também está presente: um objeto encontrado que se transforma.
José Maria Dias da Cruz
Florianópolis, 2009
O mundo
Para José Maria Dias da Cruz
O mundo nunca foi violáceo
ou se foi nunca foi só isso, é claro.
O mundo nunca foi óbvio, nem raro.
O mundo nunca foi claro.
Elaine Pauvolid
Um quadro de Braque

Observe-se a folha com 5 pontas no primeiro nível de percepção. Observe-se as linhas que convergem para um determinado ponto. Este ponto tem uma força de atração enorme, e nos dá uma consciência de um espaço plástico. Observe-se, agora, em uma forma bem alongada em cor terrosa na base levemente à esquerda e em uma outra, também terrosa, maior, com várias pequenas interferências, quase como constelações de estrelas em aparente desordem. Uma linha imaginária e estrutural ligando essas duas formas passa pelo ponto que acima referido e faz com que essas duas formas ganhem uma força de divergência ou de afastamento em relação àquele ponto. Há, portanto, uma estrutura formal com uma potencialidade intensa. Com essa estrutura Braque se libera. Escolhe, quase ao acaso, os amarelos e os esverdeados, todos levemente rompidos, ou seja, como sobre o quadro percebêssemos uma atmosfera. Ou, se quisermos, a manifestação, no quadro, do cinza sempiterno com seus enigmas. Esse cinza sempiterno surge pela qualidade dos contrastes simultâneos. Aqui cabem umas observações. Um vermelho e seu oposto, um verde, se colocados lado a lado, ganham em cromaticidade, pois um e outro se realçam mutuamente. Já duas cores semelhantes, como no quadro de Braque, um amarelo avermelhado e um outro esverdeado, se colocados lado a lado, perdem em cromaticidade, ou seja, se rompem simultaneamente por efeito de suas opostas, ou suas respectivas pós-imagens.
Os amarelados, nesse quadro de Braque, são uma evidente referência a Van Gogh. Referência esta, no entanto indireta, pois neles se manifesta o cinza sempiterno, ausente
Observe-se como uma folha quase solta à esquerda acentua toda a potência do espaço plástico gerado pelo quadro, potência essa que permite o surgimento desse amarelado tão estranho. Ao tocar a borda essa folha impede que os limites da estrutura subjacente do suporte, com seus eixos horizontais e verticais e as diagonais, assumam sua força composicional latente. Esse quadro reafirma aquilo que Braque afirma: "O pintor pensa por formas e cores, o objetivo é a poética." Surge um mistério, um estranhamento, sentimentos simultâneos de alegria e tristeza, de espanto, de revelação, etc.
Ainda sobre essa folha à esquerda podemos falar do serpenteamento vinciano, mais ligado às formas do que às cores. Diz Leonardo que “devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo e o modo como serpenteiam...” Trata-se, aqui, das linhas de contorno dos objetos como limites e dentro dela uma outra que serpenteia. Não é, como se diz, apenas o esfumato, mas uma linha que anima o espaço plástico. Dessa forma a folha, ao tocar a borda esquerda, permite que se estabeleça uma dialética entre o espaço que limita o quadro e a consciência de um espaço plástico além daquele limite. O modo como o artista trabalha a superfície deste mesmo quadro pode nos levar à percepção de um espaço além dessa superfície. Vale, aqui, transcrevermos dois versos do poema extravio do poeta Júlio Castañon Guimarães do poema Extravio: “(luz indecisa / ou quebra do horizonte?)”.
O interessante é observarmos como Leonardo nos adverte como devemos evitar que a pintura morra por duas vezes ao afirmar que o pintor, ao transpor os objetos para o quadro pode matá-lo se não souber lhes dar vida. Mais ainda podemos dizer sobre o artista que trabalha com os objetos no espaço no qual nos orientamos. Pode matá-los, também, se ignorar as possibilidades do serpenteamento.
Não parece que vemos este quadro pelos intervalos e que e nos leva a pensar plasticamente sem nenhuma necessidade de verbalizações? Ele dispensa explicações, e o que acima escrevi tem como objetivo, somente, de mostrar sua estrutura.
Tentemos deixar sair de dentro de nós tudo que está lá
Cito aqui um e-mail que recebi do artista Milton Machado.
“É o que diz a moça: "...vc pinta um universo e depois se põe dentro dele".
Pôr-se dentro é pintar um universo, pois não? Olhar de fora é pintar, pois não? Um erro cometido por críticos, de Greenberg a Moraes, foi o de achar que os pintores pintam de dentro, quando o que pintam é justamente o dentro. Numa visão materialista, enfatizada por Cézanne, o dentro são os limites da tela. Já os limites da pintura, dependem de onde se coloca a tela. No MoMA, na National Gallery, no Prado, os limites são ilimitados. No hall da reitoria, os limites dependem da ousadia da semana. Ou do dia. Ou da hora. Ou do Haro.”
José Maria Dias da Cruz
Setembro de 2008
Uma aluna descobriu esses quadros meus em uma exposição em Tiradentes do acervo de Arte Moderna de Cataguases. O museu foi fundado por meu pai. São da década de quarenta (48 ou 49).
A folha sozinha em um dos quadros sou eu. Como escreveu Cézanne "... uma tristeza que ninguém disse." Tinha doze ou treze anos. Você sabe que gostei de revê-los. Não me lembrava.
Muitos artistas freqüentavam a casa de meu pai. Santa Rosa, Pancetti, Milton da Costa, Iberê, Di Cavalcanti, etc. Mostrava meus quadros para todos que sempre me orientavam. A Tarsila conversou comigo e escreveu uma carta para meu pai referindo-se só a mim. Infelizmente a carta se perdeu.
Sobre a folha sozinha o Mollica percebeu uma coisa emocionante. "Pois é, Zé, a folha está sozinha, mas está cercada de rosa e azul, cores muito carinhosas e receptivas ao olhar do espectador. Pense nisso."
Portanto tem o primeiro quadro, uma construção espacial cerebral e o segundo, que saiu do coração. "E agora, José?"
Abraços doJosé Maria
Gauguin, Cézanne e uma geometria das cores
Gauguin disse que as cores são enigmáticas e pintou o quadro De onde viemos, o que somos e para onde iremos. Cézanne fez referência a um cinza que reina em toda a natureza e que pintava sempre uma secção do espaço. Talvez desenha-se, assim, uma geometria das cores.
O cinza onipresente, os cinzas sempiternos e sua lógica e os acasos, as várias dimensões das cores, a questão de uma centralidade não absoluta, os rompimentos dos tons, os contrastes considerando uma dinâmica cromática, harmonias e desarmonias, o serpenteamento, as cores abstratas substantivas e concretas adjetivas, podem nos levar a algumas reflexões. Consideramos as várias geometrias conhecidas e aquelas que, pelo acaso, hão de vir.
Na década de sessenta do século passado disse que uma realidade poderia se desdobrar em outras. Surgiram os quadros os quais denominei formulários. As cores eram timidamente pensadas graças às impressões que tive, dez anos antes, quando pela primeira vez vi ao vivo quadros de Poussin, Cézanne e Braque. Dez anos depois essas idéias se adensaram. Disse, então, que pelos diversos desdobramentos de uma realidade chegar-se-ia a um estado de confusão em nossos pensamentos tais que o acaso seria o limite desses pensamentos. A geometria dos fractais, que veio à tona em 1978, e a teoria do caos ainda eram desconhecidas do grande público. Foram divulgadas para os leigos em 1980. Pintei naturezas mortas considerando essas minhas observações. Na década de oitenta, mais próximo daqueles três grandes artistas, pensei no cinza sempiterno, já inteiramente interessado nos fenômenos cromáticos. Hoje penso em uma geometria das cores.
Vejamos, há o cinza onipresente que contém todos os coloridos, cinza esse que nos é interditado. Resta-nos um cinza sempiterno, causa e efeito dos coloridos. Um colorido, portanto, é uma fração e dele podemos dizer que, como fração, é maior que o todo. Como as cores possuem várias dimensões diremos que elas estão sempre se auto organizando dentro de um colorido. Acontecimentos ao acaso participam dessa auto organização, pois um colorido, pela sua dinâmica própria, pode gerar outros cinzas sempiternos, ou seja, outros fracionamentos em seu interior. Os acasos seriam, portanto, as novas convivências cromáticas que surgiriam da necessidade dessa auto organização e do surgimento de outros cinzas sempiternos. Digamos, novas cores que participariam do colorido em determinado nível de realidade. Há um limite, entretanto, pois essa auto organização se encaminharia para o cinza onipresente que, como dissemos, nos é interditado. Dependendo de nós como testemunhas, se desorganizam. Somos levados a escolher algumas poucas cores decorrentes do acaso para não nos perdermos, para evitarmos um fim prematuro. Daí falar do acaso da última pincelada e citar Cézanne quando ele afirma que a harmonia se dá por si só. Um novo processo semelhante de auto organização se inicia, uma outra realidade. E assim sucessivamente até onde nossos sentidos são capazes de suportar. A vida de um colorido depende de seu princípio, o cinza onipresente e de seu fim, sua própria morte, como uma existência que nos é dada. Volto a citar Braque: “É o acaso que nos revela a existência.” Transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan retirada de seu livro, Entre o Cristal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro.
[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças de desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética , mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.
Para nós este cinza sempiterno pode ser o princípio e o fim pois é, como vimos, um pré ou pós fenômeno. Princípio quando intuímos que dele surgem os coloridos. Fim, quando nossos sentidos não mais nos permitem os acasos. Compreendemos Baudelaire quando ele se refere ao prazer e ao pecado. Apoiados nessa referência diremos que as cores são simultaneamente o prazer e o pecado. O fim (ou o princípio?) dos acasos coincide com o nosso fim: a nossa morte. Pelas cores podemos refletir sobre a ética. O nosso esforço para não nos perdermos no colorido tem um sentido ético. O enigma, entretanto, permanece.
FORMULÁRIOS

Chardin, que pintor complexo! Difícil falar-se de sua pintura. Mas há uma frase que pode nos permitir alguns comentários. Diz ele que o pintor tem que manter uma certa distância de seu modelo. Pensamos: se há uma aproximação o pintor pode se perder nos detalhes; se um afastamento, se perde da pintura; no devido lugar compreende a verdade da pintura. É curioso
observar suas pinceladas. Não demonstram um gesto, mas a objetividade ou realidade de uma pincelada, como que dissesse "isso é uma pincelada". O mesmo se pode dizer das cores: "isso não é a cor de um objeto, isso é uma
cor." Pouco importa que se muitas vezes muito esmaecida. Cézanne o compreendeu muito bem quando afirmou que "La nature se debrouille." A pintura por si só se organiza dentro de uma lógica. Uma figura, em um quadro de Chardin, nunca aparece inteira em muito de seus quadro, sobretudo naqueles pintados em sua maturidade. Um detalhe identificável, e a figura surge inteira. Há um quadro, uma cena interior. Uma empregada recostada em
um móvel, pousa levemente a mão sobre uns pães em cima do móvel. Na outra mão uma sacola com talvez uma ave morta. A saia é de um azulado esmaecido. A
sacola, os pães, a mão sobre eles pousada surgem pela identificação do rosto da empregada. O cômodo onde ela está, bem sombreado. Se liga por uma porta, pelo lado esquerdo a uma outra sala, mais iluminada. Entre uma sala e outra um filtro enorme em solene perfil, e penso em um objeto carregado de metáforas. Ou uma fronteira entre os dois espaços, o sombreado e o mais claro, filtro que elimina os recalques das sombras e ilumina as possíveis fantasias da empregada no primeiro plano de percepção. No fundo dessa sala contígua, perto de uma outra porta, uma talvez uma projeção da empregada,
conversa com um galanteador. Além desta porta um pedacinho mínimo de céu se apresenta como um limite do mundo dessa adorável empregada.
Uma aproximação de Chardin com o narrativo. O quadro em questão ilustra bem aquilo que Leonardo nos fala: "A pintura é uma poesia muda."
Penso que Chardin nos diz: não é, mas é, basta ver pelos intervalos. Por aí refere-se apenas à pintura, e nos faz pensar na sua verdade.
Noto que hoje há um interesse em Manet. Penso que para se estudar Manet tem que se começar por Chardin. Cézanne disse, diante das flores de Manet que ali estava a verdade da pintura. A verdade da pintura, como motivo da própria pintura, talvez comece em Chardin.
CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO

O vernissage da exposição "As formas do colorido" e o lançamento do livro "O cormatismo cezanneano", de José Maria Dias da Cruz, se darão no dia 14 de Junho, às 19 horas. O endereço da Galeria TNT é; Estrada Barra da Tijuca, 1636 - Loja A - Itanhanguá. O telefone para mais informações é: 21 2495 5756. A exposição seguirá até o dia 28 de Junho de 2011.