Um quadro de Cézanne: A Cabana do Jordão
A frase de Leonardo que está no Tratado da Pintura é a seguinte; “Devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares.”
Para melhor entendermos o que abaixo queremos demonstrar é importante fazermos a seguinte experiência. Façamos um cone com uma pequena abertura em seu vértice. Olhemos um pequeno objeto a uma dada distancia e levemos o cone com os dois olhos abertos e ainda focando o objeto. Ora fecha-se um olho, ora outro. Com um deles a imagem do objeto permanece focada e observada pelo furo no vértice do cone. Com o outro o objeto desaparece do campo de visão e este olho vai focar um outro ponto que não é registrado pelo nosso cérebro.
Vejamos agora. Observa-se um objeto, um cilindro, por exemplo, de uns três centímetros de diâmetro. Nosso cérebro focaliza seu contorno sem abandonar a sensação de profundidade. Na visão um olho foca e o outro nos dá essa sensação de profundidade. Há, portanto, um ponto que está na superfície do objeto e que não é registrado pelo nosso cérebro, quando usamos um olho só. Se projetarmos esse objeto em uma folha de papel, traçaremos seu simples contorno. Mas se considerarmos aquele ponto podemos representá-lo ao lado do objeto, e, se o prolongarmos, terá uma linha paralela, a que contorna o objeto. Vimos que um olho foca e o outro nos dá a profundidade. Na distância entre as duas linhas ocorre o que Leonardo considera: as curvaturas circulares serpenteantes.
Agora uma outra observação. O mesmo objeto no espaço e um ponto além dele. Se fecharmos ora um olho, ora o outro, o objeto parece que se desloca. Com os dois olhos aquele ponto continua além, encoberto. Com apenas um olho observaremos que ele, o objeto, se desloca de um lugar para outro, e nesse deslocamento o ponto se torna visível. Se projetarmos em uma folha de papel o contorno desse objeto, como estivesse já havido o deslocamento, teríamos dois pontos; este que está encoberto, e um outro, que foi anotado na linha de contorno. Mas se anotarmos como vemos com olho apenas, no qual ele, o ponto, se torna visível, e considerarmos também a primeira projeção com o ponto invisível, e o anotado na linha de contorno, quando o objeto é visto pelos dois olhos, podemos concluir o seguinte: teremos, então, três pontos. O anotado na linha de contorno, o encoberto e o visível, que, se visto do alto, configuram um triângulo. Por isso que Leonardo nos adverte em relação às concavidades angulares. Um ponto no limite do objeto, aquele que na projeção está na margem da linha de contorno, outro quando o objeto deslocado se torna visível e um terceiro, que fica invisível quando visto por um olho só. Em toda a extensão do objeto, uma concavidade, e nesta um serpenteamento ocorre. Portanto o serpenteamento sempre anima ou o objeto, ou o espaço plástico.
Em ambos os casos há temporalidades. Se considerarmos o objeto apenas por sua simples linha de contorno, não teríamos o serpenteamento e o espaço plástico se tornaria atemporal. Podemos afirmar, por exemplo, que a Mona Lisa é temporal e externa, e o casal Arnolfini é atemporal e interno, portanto, sempiterno.
Ravaison afirmou que Leonardo considerava um ponto atrás do que estava representado, mas dizia que o serpenteamento era uma propriedade apenas dos animais vivos, como o eixo gerador deles, como se estivesse latente a capacidade de movimento. Se repararmos nas batalhas de Paulo Ucello, artista que tanto se ocupou dos estudos da perspectiva científica, notaremos, por exemplo, que os cavalos são absolutamente estáticos, que não esboçam nenhuma impressão de um movimento posterior.
Mas como temos no espaço imediato e temporal vários objetos, cada qual terá seu serpenteamento segundo seu termo. Várias distâncias se formam de acordo com nossa atenção. Daí, diremos que o espaço, considerando o observador como testemunha, torna-se multidimensional em face das diversas possibilidades de níveis de realidade e percepção.
Agora observemos o quadro de Cézanne, A Cabana do Jordão.
Vejamos a chaminé da cabana. O céu, que numa representação convencional dentro das regras da perspectiva científica a marcaria como nosso cérebro registra com todas suas linhas de contorno. O quadro se transformaria bem mais numa representação do que numa soma de diversas sensações. Cézanne assim não procede visando a representação e vemos o céu como que invadindo a figuração absoluta da chaminé. Vemos de fato o que está atrás dela, nesse caso o céu.
Como Cézanne afirmou que a linha não existe em absoluto e que o desenho puro é uma abstração, podemos afirmar que o olhar substitui essa linha de contorno pelo serpenteamento. Disse mais ainda: os objetos no espaço são todos convexos. Referiu-se também às nas pequenas sensações. Temos agora o que Poussin nos dizia sobre o saber do olho, das diversas distâncias e dos eixos visuais. Referem-se, neste caso, as distâncias em relação ao objeto observado. Em relação aos eixos visuais considera a visão simultânea, ora mono, ora bi ocular. Sobre essas distâncias temos a afirmação do artista Milton Machado, que se refere às distâncias em proximidade, vale dizer, considerando um olhar menos quantitativo que qualitativo ou não mensurável. Isso pode reafirmar aquilo que acima dissemos, um espaço multidimensional. Há ainda a famosa frase de Cézanne na qual ele diz que devemos tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro. Concluímos, então, que ele considerava mais a construção de um espaço plástico e que esses objetos geométricos não lhes serviam para circunscrição neles das figuras transpostas para o quadro. Podemos perceber que estes objetos são, de acordo com o modo como os vemos, ou os testemunhamos, espaços ora esféricos, ora cônicos, ora cilíndricos.
Há ainda a frase de Cézanne sobre um cinza que reina em toda natureza. Dele, como sempre digo, temos o cinza sempiterno como um pré ou pósfenômeno, pois as cores para ele divergem e simultaneamente convergem. O cinza sempiterno pode ser teorizado a partir do fenômeno do rompimento do tom, quando a pós imagem se sobrepõe ao tom alterando-o. Este fenômeno se dá no tempo que o observador ou testemunha escolhe para observá-lo. O que pode nos remeter aos versos do poeta Michael Palmer; “As diversas distâncias entre olho e pálpebra. Vale dizer, as constantes passagens entre o mundo externo e interno. Chegamos a um ponto no qual podemos considerar o movimento cubista iniciado por Braque e seguido por Picasso, como próximo das questões apontadas por Leonardo sobre o serpenteamento. Podemos, acredito, considerar bem viável estabelecermos as normas para uma geometria das cores.
José Maria Dias da Cruz
Florianópolis, outubro de 2009.
A frase de Leonardo que está no Tratado da Pintura é a seguinte; “Devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares.”
Para melhor entendermos o que abaixo queremos demonstrar é importante fazermos a seguinte experiência. Façamos um cone com uma pequena abertura em seu vértice. Olhemos um pequeno objeto a uma dada distancia e levemos o cone com os dois olhos abertos e ainda focando o objeto. Ora fecha-se um olho, ora outro. Com um deles a imagem do objeto permanece focada e observada pelo furo no vértice do cone. Com o outro o objeto desaparece do campo de visão e este olho vai focar um outro ponto que não é registrado pelo nosso cérebro.
Vejamos agora. Observa-se um objeto, um cilindro, por exemplo, de uns três centímetros de diâmetro. Nosso cérebro focaliza seu contorno sem abandonar a sensação de profundidade. Na visão um olho foca e o outro nos dá essa sensação de profundidade. Há, portanto, um ponto que está na superfície do objeto e que não é registrado pelo nosso cérebro, quando usamos um olho só. Se projetarmos esse objeto em uma folha de papel, traçaremos seu simples contorno. Mas se considerarmos aquele ponto podemos representá-lo ao lado do objeto, e, se o prolongarmos, terá uma linha paralela, a que contorna o objeto. Vimos que um olho foca e o outro nos dá a profundidade. Na distância entre as duas linhas ocorre o que Leonardo considera: as curvaturas circulares serpenteantes.
Agora uma outra observação. O mesmo objeto no espaço e um ponto além dele. Se fecharmos ora um olho, ora o outro, o objeto parece que se desloca. Com os dois olhos aquele ponto continua além, encoberto. Com apenas um olho observaremos que ele, o objeto, se desloca de um lugar para outro, e nesse deslocamento o ponto se torna visível. Se projetarmos em uma folha de papel o contorno desse objeto, como estivesse já havido o deslocamento, teríamos dois pontos; este que está encoberto, e um outro, que foi anotado na linha de contorno. Mas se anotarmos como vemos com olho apenas, no qual ele, o ponto, se torna visível, e considerarmos também a primeira projeção com o ponto invisível, e o anotado na linha de contorno, quando o objeto é visto pelos dois olhos, podemos concluir o seguinte: teremos, então, três pontos. O anotado na linha de contorno, o encoberto e o visível, que, se visto do alto, configuram um triângulo. Por isso que Leonardo nos adverte em relação às concavidades angulares. Um ponto no limite do objeto, aquele que na projeção está na margem da linha de contorno, outro quando o objeto deslocado se torna visível e um terceiro, que fica invisível quando visto por um olho só. Em toda a extensão do objeto, uma concavidade, e nesta um serpenteamento ocorre. Portanto o serpenteamento sempre anima ou o objeto, ou o espaço plástico.
Em ambos os casos há temporalidades. Se considerarmos o objeto apenas por sua simples linha de contorno, não teríamos o serpenteamento e o espaço plástico se tornaria atemporal. Podemos afirmar, por exemplo, que a Mona Lisa é temporal e externa, e o casal Arnolfini é atemporal e interno, portanto, sempiterno.
Ravaison afirmou que Leonardo considerava um ponto atrás do que estava representado, mas dizia que o serpenteamento era uma propriedade apenas dos animais vivos, como o eixo gerador deles, como se estivesse latente a capacidade de movimento. Se repararmos nas batalhas de Paulo Ucello, artista que tanto se ocupou dos estudos da perspectiva científica, notaremos, por exemplo, que os cavalos são absolutamente estáticos, que não esboçam nenhuma impressão de um movimento posterior.
Mas como temos no espaço imediato e temporal vários objetos, cada qual terá seu serpenteamento segundo seu termo. Várias distâncias se formam de acordo com nossa atenção. Daí, diremos que o espaço, considerando o observador como testemunha, torna-se multidimensional em face das diversas possibilidades de níveis de realidade e percepção.
Agora observemos o quadro de Cézanne, A Cabana do Jordão.
Vejamos a chaminé da cabana. O céu, que numa representação convencional dentro das regras da perspectiva científica a marcaria como nosso cérebro registra com todas suas linhas de contorno. O quadro se transformaria bem mais numa representação do que numa soma de diversas sensações. Cézanne assim não procede visando a representação e vemos o céu como que invadindo a figuração absoluta da chaminé. Vemos de fato o que está atrás dela, nesse caso o céu.
Como Cézanne afirmou que a linha não existe em absoluto e que o desenho puro é uma abstração, podemos afirmar que o olhar substitui essa linha de contorno pelo serpenteamento. Disse mais ainda: os objetos no espaço são todos convexos. Referiu-se também às nas pequenas sensações. Temos agora o que Poussin nos dizia sobre o saber do olho, das diversas distâncias e dos eixos visuais. Referem-se, neste caso, as distâncias em relação ao objeto observado. Em relação aos eixos visuais considera a visão simultânea, ora mono, ora bi ocular. Sobre essas distâncias temos a afirmação do artista Milton Machado, que se refere às distâncias em proximidade, vale dizer, considerando um olhar menos quantitativo que qualitativo ou não mensurável. Isso pode reafirmar aquilo que acima dissemos, um espaço multidimensional. Há ainda a famosa frase de Cézanne na qual ele diz que devemos tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro. Concluímos, então, que ele considerava mais a construção de um espaço plástico e que esses objetos geométricos não lhes serviam para circunscrição neles das figuras transpostas para o quadro. Podemos perceber que estes objetos são, de acordo com o modo como os vemos, ou os testemunhamos, espaços ora esféricos, ora cônicos, ora cilíndricos.
Há ainda a frase de Cézanne sobre um cinza que reina em toda natureza. Dele, como sempre digo, temos o cinza sempiterno como um pré ou pósfenômeno, pois as cores para ele divergem e simultaneamente convergem. O cinza sempiterno pode ser teorizado a partir do fenômeno do rompimento do tom, quando a pós imagem se sobrepõe ao tom alterando-o. Este fenômeno se dá no tempo que o observador ou testemunha escolhe para observá-lo. O que pode nos remeter aos versos do poeta Michael Palmer; “As diversas distâncias entre olho e pálpebra. Vale dizer, as constantes passagens entre o mundo externo e interno. Chegamos a um ponto no qual podemos considerar o movimento cubista iniciado por Braque e seguido por Picasso, como próximo das questões apontadas por Leonardo sobre o serpenteamento. Podemos, acredito, considerar bem viável estabelecermos as normas para uma geometria das cores.
José Maria Dias da Cruz
Florianópolis, outubro de 2009.
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