O que está além do visível? Paula Cajaty analisa em entrevista com José Maria Dias da Cruz

Paula Cajaty é escritora, poeta, advogada, conselheira editorial e cronista. Em seu site [ www.paulacajaty.com ] oferece poesias, contos, críticas, dicas e resenhas, além de entrevistas com artistas plásticos, intelectuais e autores.

Na entrevista a seguir, realizada em abril de 2011, Paula Cajaty perscruta o pensamento plástico de José Maria Dias da Cruz.

Você busca a base de tudo o que vemos, aquilo que está oculto por trás de toda cor, aquilo que o olho não alcança. Essa busca é, na verdade, a tentativa de entender o mundo como dicotomia entre superfície e profundeza, e a tentativa de entendimento dessa lógica?

Tenho mais de 60 anos de estrada. Daí responder às perguntas considerando, sobretudo, o que me ocupa atualmente. Isso não me exclui de levantar algumas considerações históricas. Uma delas é a questão da cor, que sempre foi muito recalcada em nossa cultura, sendo considerada, por exemplo, por nomes como Aristóteles e Kant como uma coisa supérflua. A cor sempre me interessou. Outra: a questão da dicotomia superfície profundidade. A perspectiva cientifica foi uma conquista da Renascença. Creio que o primeiro pintor a enfrentar a dicotomia superfície/profundidade tenha sido Caravaggio quando pintou uma natureza morta que está em um museu de Milão [Segue a imagem abaixo].


Essa natureza morta é construída toda baseada no número de ouro. Esse quadro prenuncia o quadro objeto em substituição ao quadro janela. O curioso que nela a cor é muito pouco explorada, daí Poussin ter afirmado que Caravaggio foi posto no mundo para acabar com a pintura. Põe em questão, asssim, a discussão entre desenhistas e coloristas. Já Cézanne afirma que quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma se precisa.
Já a questão da planaridade foi apontada por Grimberg em meados do século XX como a única característica da pintura não compartilhada com nenhuma outra arte. Dizia ele então que os pintores deviam considerar apenas a superfície plana. Como meus interesses sempre colocaram as cores em primeiro plano procurei estudar os pintores coloristas, desde os venezianos, passando por Leonardo, Poussin, Chardin, Delacroix, Braque, além de outros, mas sobretudo Cézanne. Este dizia que a luz não existe para o pintor. Dizia também que somente um cinza reina na natureza. Daí ter chegado ao cinza sempiterno, que não existe, mas é potencialmente ativo, como o vazio cheio da física quântica. Neste caso é um pós ou pré fenômeno. As cores simultaneamente para esse cinza convergem e divergem. Estudei também o serpentaeamento, levantado por Leonardo no Tratado da Pintura. E nele está dito que devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo para observar como serpenteiam. Ou seja, como dão vida à pintura. Nas histórias das artes sempre está dito que Leonardo introduziu o esfumato na pintura. Esfumato é um procedimento e não uma questão teórica. Tudo isso está me fazendo pensar em uma geometria das cores na qual entra em jogo outras dimensões do espaço plástico, inclusive as temporais, portanto uma lógica, como diria Cézanne, nada absurda. Estou tentando entender quais as formas dos coloridos. Entra aqui a geometria dos fractais, na qual o cinza sempiterno é sempre uma constante, seja no todo ou nos fracionamentos deste.

Para entender mais sobre pintura, você passeia em outras áreas de conhecimento, também elas feitas de contrastes, rompimentos e escolhas justas. Essa visão de conjunto e interdisciplinar permite entender e perceber melhor a própria pintura?

Certamente que sim, mas hoje penso também na transdisciplinaridade. No mundo tão facetado no qual vivemos, agravado por um neo liberalismo inqualificável, não vejo outra saída. Assim a arte pode ser entendida como um sobrevôo.

Em uma das frases citadas de Cézanne, ele dizia que pintar é contrastar. Escrever também é um exercício de contrastar? De dialogar, e de experimentar limites e serpenteamentos?

A literatura não é a minha área, mas sempre gostei de ler romances e poesias. Aliás, tive um professor, o aquiteto Aldary Toledo, e eu tinha meus 14 anos, que me disse que se aprende mais pintura lendo-se poesia. Nunca me apeguei muito a livros teóricos, li alguns apenas. Aqui seria interessante citar Gauguin. Este dizia que os pintores em nenhum caso deveriam se ocupar com os homens de letras, referindo-se aos teóricos. Estes criam dogmas que desorientam não somente os artistas, mas o público em geral. O caso do esfumato que citei acima pode ser um bom exemplo. Mas acredito que em literatura há os exercícios de diálogos, de experimentar limites e serpenteamentos. Quanto a este último penso que há uma “linha” que dá vida aos textos literários. Quanto à poesia me agrada o fato que ela se utiliza na maioria das vezes das palavras remotas. As palavras imediatas têm, com observa Valery, muito poder. Creio que é por isso que Braque diz que escrever não é descrever.

Na pintura, as cores vizinhas e o tempo de observação são capazes de alterar a percepção de uma obra. Também na literatura, as obras vizinhas ou próximas e o tempo de apreensão (de amadurecimento) é capaz de alterar a percepção do leitor?

Quando leio romances, e sobretudo poesias, percebo como as palavras remotas têm a capacidade de uma ressonância que quanto mais amadurecemos, mais as percebemos como podem alterar a percepção do leitor. Talvez seja oportuno citar aqui uma frase de Júlio Castañon Guimarães de seu poema em prosa intitulado Friagem: “Do escuro então lhe perpassou pela pele, num raspão, algo como uma palavra remota.”

Geralmente você cita poesias que retratam seus questionamentos no estudo da pintura, considerando que ambas as artes refletem o que está "além do visível, e que só uma sensibilidade especial pode ver e fazer com que possamos vê-la". O que poesia e pintura mais têm em comum?

Voltemos ao Leonardo quando ele diz que a pintura é uma poesia muda. Mas como disse acima, que tem vida, assim como a poesia. O pintor ou poeta dão vida a suas obras, graças ao serpenteamento, às palavras ou espaços remotos, etc., muito embora não podermos descartar os espaços imediatos, muito presentes na arte contemporânea, e aqui completamos a frase de Braque citada acima:”Pintar não é representar.”

Você também sugere que boas telas e poesias devem ser provocações (provocações de ânimos, de reflexões). O que torna o trabalho do artista um produto da Arte? Seu momento prévio de inspiração, ou seu momento posterior de apreensão pelos múltiplos indivíduos espectadores/leitores?

Arte é uma coisa bem complexa e talvez ainda nem saibamos o que ela realmente é. Por isso talvez seja oportuno lembramos de Espinosa. Epistemologicamente ele fala dos três estados para alcançarmos um ponto mais abrangente. Diz ele que primeiro tomamos conhecimento das coisas. No segundo racionalizamo-nas. No terceiro ele se refere à intuição com conhecimento, ou seja, o momento que somos mais capazes de produzir do que criar, uma vez que para o filósofo na produção há a criação. Obviamente nesta última é importantíssimo a experiência, o amadurecimento, etc.

Termino, então, esta entrevista mostrando um quadro de minha autoria, realizado há mais de dez anos, denominado Esse Azul, quando já me sentia atraído por uma geometria das cores.

Um comentário:

madlurasmus disse...

Impecável o posicionamento das figuras em cores suavemente combinadas.
Vê-se logo que o autor é genial no trato com as formas e as cores.
É o Principe das Cores, certamente

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Chardin, a poesia muda e a verdade em pintura


Chardin, que pintor complexo! Difícil falar-se de sua pintura. Mas há uma frase que pode nos permitir alguns comentários. Diz ele que o pintor tem que manter uma certa distância de seu modelo. Pensamos: se há uma aproximação o pintor pode se perder nos detalhes; se um afastamento, se perde da pintura; no devido lugar compreende a verdade da pintura. É curioso
observar suas pinceladas. Não demonstram um gesto, mas a objetividade ou realidade de uma pincelada, como que dissesse "isso é uma pincelada". O mesmo se pode dizer das cores: "isso não é a cor de um objeto, isso é uma
cor." Pouco importa que se muitas vezes muito esmaecida. Cézanne o compreendeu muito bem quando afirmou que "La nature se debrouille." A pintura por si só se organiza dentro de uma lógica. Uma figura, em um quadro de Chardin, nunca aparece inteira em muito de seus quadro, sobretudo naqueles pintados em sua maturidade. Um detalhe identificável, e a figura surge inteira. Há um quadro, uma cena interior. Uma empregada recostada em
um móvel, pousa levemente a mão sobre uns pães em cima do móvel. Na outra mão uma sacola com talvez uma ave morta. A saia é de um azulado esmaecido. A
sacola, os pães, a mão sobre eles pousada surgem pela identificação do rosto da empregada. O cômodo onde ela está, bem sombreado. Se liga por uma porta, pelo lado esquerdo a uma outra sala, mais iluminada. Entre uma sala e outra um filtro enorme em solene perfil, e penso em um objeto carregado de metáforas. Ou uma fronteira entre os dois espaços, o sombreado e o mais claro, filtro que elimina os recalques das sombras e ilumina as possíveis fantasias da empregada no primeiro plano de percepção. No fundo dessa sala contígua, perto de uma outra porta, uma talvez uma projeção da empregada,
conversa com um galanteador. Além desta porta um pedacinho mínimo de céu se apresenta como um limite do mundo dessa adorável empregada.

Uma aproximação de Chardin com o narrativo. O quadro em questão ilustra bem aquilo que Leonardo nos fala: "A pintura é uma poesia muda."

Penso que Chardin nos diz: não é, mas é, basta ver pelos intervalos. Por aí refere-se apenas à pintura, e nos faz pensar na sua verdade.

Noto que hoje há um interesse em Manet. Penso que para se estudar Manet tem que se começar por Chardin. Cézanne disse, diante das flores de Manet que ali estava a verdade da pintura. A verdade da pintura, como motivo da própria pintura, talvez comece em Chardin.

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO
O vernissage da exposição "As formas do colorido" e o lançamento do livro "O cormatismo cezanneano", de José Maria Dias da Cruz, se darão no dia 14 de Junho, às 19 horas. O endereço da Galeria TNT é; Estrada Barra da Tijuca, 1636 - Loja A - Itanhanguá. O telefone para mais informações é: 21 2495 5756. A exposição seguirá até o dia 28 de Junho de 2011.