Texto de Luiz Camillo Osório | abril de 2002 e janeiro de 2007

“...podemos desviar um rio de seu curso, mas não fazê-lo voltar à sua nascente.”
G. Braque
Depois de discutir os anos 50 a partir dos movimentos abstratos, tomamos agora a tarefa mais árdua de lidar com a produção mais recente, ainda em vias de constituição histórica. Contar esta história é um desafio e tanto. Antes de assumi-lo, entretanto, quero fazer um breve esclarecimento: vocês não lerão aqui a história da pintura brasileira, mas uma história entre tantas possíveis. Esta quantidade é quase igual ao número de autores que se dispuser a escrevê-la. É claro que haverá pontos de convergência entre as narrativas apresentadas, mas as parcialidades e idiossincrasias de cada olhar individual darão sempre um tempero particular.

Entre os artistas aqui tratados, muitos já são moeda corrente e fariam parte do relato de qualquer historiador. O que muda, por certo, são as obras valorizadas e a perspectiva e foco das abordagens. Somam-se a estes “medalhões”, aqueles ainda em fase probatória, geralmente mais jovens, e que caberá ao historiador/crítico eleger e neles apostar com a convicção dos seus argumentos e do seu “olho”. No intercâmbio entre as obras - dos consagrados e dos emergentes - construiremos este relato.

Ao ser fixado um momento histórico – a década de 1960 - como ponto de partida, vi-me diante de uma questão difícil: como relacionar os artistas comprometidos e identificados com cada década e aqueles outros extemporâneos que fazem suas obras à revelia das imposições de uma época? Será Iberê Camargo um pintor da década de 60 como foi, por exemplo, Antonio Dias? Não. Todavia, ao se falar da pintura produzida nesta década no Brasil, devemos obrigatoriamente falar de Iberê. E o próprio Antonio Dias, por que não será também ele um pintor da década de 90, se ele realizou ali também inúmeras e magníficas telas? Soma-se a isto o fato de que a pintura ao longo de todo este período viu-se constantemente desafiada a se repensar como linguagem, utilizando-se de outros meios - como a fotografia e o vídeo, por exemplo - que ampliassem a experiência pictórica, sem que isto implicasse na exclusão dos meios tradicionais, a tinta a óleo e a tela.
Assim, já de saída, farei uma distinção arriscada, quase temerária, a saber: há os artistas que se interessam pelas questões da pintura, mas que não se prendem ao ofício e ao fazer pictórico, e há também os pintores propriamente ditos, que se entregam visceral e atemporalmente à tarefa de pintar. Espero ir dando conta destes dois “tipos” e suas variadas operações poéticas ao longo do ensaio.
A década de 1960, como todos sabem, foi um divisor de águas. As mudanças políticas, sociais, culturais e comportamentais foram avassaladoras. O mundo, de fato, mudou de cara. A rebeldia era uma categoria do pensamento. Tudo parecia possível, o sonho ultrapassava a realidade. Mas que não se pense, com este olhar retrospectivo, que as coisas eram fáceis. Nunca foram. A tensão estava no ar. O festival de Woodstock era uma forma de resistir à guerra do Vietnam, assim como “Alegria, alegria” era um canto de luta frente à obscuridade da ditadura militar.


Neste torvelinho espiritual e existencial, a arte também vivia sua própria revolução. O Brasil, em particular, passava por um momento especialmente rico e renovador. A virada para os anos 60 foi um período de ebulição criativa. No cenário internacional, a arte pop surgia varrendo a cerimônia da velha cultura européia. As imagens glamourosas do cinema, da publicidade e da televisão cruzaram as barreiras da alta cultura. Não havia mais fronteira estável entre o erudito e o popular. A banalidade e a transcendência deram-se as mãos, complicando, e muito, nossas certezas sobre o que seja ou não arte. Foi na década de 1960, no meio desta renovação pop, que novas formas de arte surgiram transformando o papel do espectador. Os happenings, as performances, os objetos e as instalações disseminaram-se nesta década.

Com o aparecimento destas novas formas de arte, era natural que os meios tradicionais também sofressem alguns abalos. A pintura, a escultura e o desenho tomavam novas direções. Isto não significou, é claro, que não se fizesse mais a boa e velha pintura com tintas, pincéis e tela. Muitos pintores continuaram realizando o seu trabalho com os mesmos materiais da tradição. Nenhum problema com isto. Todavia, outros artistas, como já mencionei, apesar de ainda vinculados à experiência pictórica, sentiram vontade de explorar outros meios e suportes, sem necessariamente abrirem mão da pintura, entendida, de forma ampliada, como uma atividade formadora de nossa atenção e inteligência visuais.

Em um texto escrito no dia 16 de fevereiro de 1961, Hélio Oiticica fazia a seguinte observação: “Já não tenho dúvidas que a era do fim do quadro está definitivamente inaugurada. Para mim a dialética que envolve o problema da pintura avançou, juntamente com as experiências (as obras), no sentido da transformada pintura-quadro em outra coisa (...), que já não é mais possível aceitar o desenvolvimento “dentro do quadro”, o quadro já se saturou(...) o problema da pintura se resolve na destruição do quadro, ou da sua incorporação no espaço e no tempo. A pintura caracteriza-se, como elemento principal, pela cor(...)”1. Estas reflexões ou teorizações de Hélio Oiticica sobre a sobrevivência da pintura para além do quadro, do espaço planar da tela, não surgia divorciada da produção artística à sua volta. Os artistas neoconcretos – mais especialmente ele próprio, Lygia Pape e Aluísio Carvão (em certa medida poderíamos falar também de Lygia Clark, que, todavia, como já destacamos, foi do plano para o espaço com um pensamento mais escultórico do que pictórico) – realizavam obras cujos efeitos eram justamente os detectados pelo texto, a saber, ampliação da experiência da cor em direção ao espaço. De Oiticica, se tomarmos o desenvolvimento das invenções para os bólides e daí para os penetráveis, percebemos claramente esta incorporação e espacialização da cor.

Uma artista a ser mencionada neste desdobramento do neoconcretismo na década de 60 é a gaúcha, radicada no Rio de Janeiro, Ione Saldanha. Ela começou sua trajetória influenciada por Volpi e Vieira da Silva. Do primeiro, vemos em sua pintura a referência lírica de um Brasil pré-industrial, com uma paleta suave e alegre, onde as cores quentes aquecem o ambiente sem arder nos olhos. Já de Vieira da Silva vem um olhar desconstrutivo da paisagem urbana, um flerte ocasional com a abstração informal tão em voga naqueles primeiros anos da década de 60. Aos poucos, ela foi desinibindo sua experimentação cromática, deslocando-a para o espaço através das ripas e, em seguida, dos seus magníficos bambus e bobinas, lindamente coloridos. Há nestas experiências de Ione Saldanha - realizadas no final daquela década e ao longo da sua carreira até o seu falecimento em Janeiro de 2001 - a conquista de sua maioridade pictórica em que ela amplia a escala de sua sensibilidade cromática sem perder de vista seu intimismo lírico. Só uma artista que morou anos em frente à praia do Leblon, com suas estacas de madeira cobertas de cor, poderia realizar “pinturas” como estas nos bambus.

Depois deste desvio poético pela cor de Ione Saldanha, fixemos nossa atenção nos embates mais duros daquele período. Entre 1961 e 1962, nomes importantes da cultura brasileira optaram pelo engajamento político, atrelando-se aos Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE. Com o golpe de 1964, a barra pesou e o único caminho possível parecia ser a radicalização dos discursos. Ou o experimentalismo assumia esta politização ou se tornava um exercício frívolo e alienado. A ida de Hélio Oiticica para a Mangueira e o surgimento dos artistas da Nova figuração (Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, Carlos Vergara, Antonio Dias e Pedro Escosteguy), um pouco antes da exposição Opinião 65, são um resultado direto deste processo. Como observou Antonio Dias, analisando o aparecimento desta geração, “antes de mais nada, unia-nos a juventude e o idealismo de lutar por um país sem ditadores e por uma renovação da linguagem visual, que parecia menos interessada em estética e mais voltada para a incorporação de sistemas de comunicação de massas”2.
Estão apresentados aqui os termos próprios a este novo contexto poético: enfrentamento político e incorporação de uma visualidade cotidiana. Segundo o crítico Paulo Sergio Duarte, “pela primeira vez, nas artes plásticas, a questão política e a crítica social apareciam integradas às novas linguagens e não associadas aos ‘realismos’, como eram freqüentemente tratadas pelos artistas oficiais da esquerda”3. Neste aspecto, fica patente que a lição das vanguardas já estava assimilada: para as coisas novas serem ditas e vistas, novas formas deveriam ser inventadas. Ou seja, “o que se diz” equivale ao “como se diz”. A mensagem era o meio.

Se tomarmos as xilogravuras e desenhos de Roberto Magalhães dos anos 63/64, veremos a nova-figuração desentranhando-se naqueles trabalhos, cujas imagens um tanto monstruosas pareciam cuspidas para fora do papel, potencializando a substância expressiva. A linha está completamente desinibida e atua independente dos contrastes de luz e sombra. As imagens são diretas, raivosas e sujas. Não há nenhum resquício de preciosismo. A artesania gráfica submete-se a uma necessidade imediata de expressão. Este aprendizado gráfico foi importante para esta geração da nova figuração, primeiro, no sentido de se retomar uma “expressividade suja” depois da limpeza concreta e, segundo, pela aposta em um meio que garantisse uma difusão mais ampla para a produção artística.

Antonio Dias que fora aluno do gravador Oswaldo Goeldi, percebia a força dos trabalhos de Roberto Magalhães, mas ampliou seu alcance plástico criando assemblagens originalíssimas que misturavam ao clima sombrio da tradição gráfica expressionista, a imediatez das histórias em quadrinho, uma estruturação construtiva e uma desenvoltura incomum no trato com materiais variados. Salta aos olhos a visceralidade destes trabalhos, sua vontade de falar de um mundo opressivo e nada confortável que impelia o jovem artista para o confronto e a luta – que podia se dar politicamente pelo engajamento na luta armada e/ou artisticamente pela procura de uma violência expressiva que provocasse a sensibilidade anestesiada pela propaganda oficial.

Na mesma linha de Antonio Dias, só que substituindo um pouco da visceralidade expressionista pela causticidade de uma crônica social retirada dos folhetins e dos cordéis populares, Rubens Gerchman produziu verdadeiros ícones visuais da cultura urbana brasileira daquele período. As professorinhas, Desaparecidos, O Rei do Mau Gosto e, principalmente, Lindonéia, a Gioconda do subúrbio, que se tornou um hino tropicalista através da música de Caetano Veloso. Quem definiu bem o significado desta pintura na cena cultural daqueles anos de chumbo foi Paulo Sergio Duarte, ao dizer que “a rigor, Lindonéia não é um retrato, apesar de seu subtítulo – a Gioconda dos subúrbios – a nos atrair nesta direção. É fragmento do fragmento da nova paisagem”, ou seja, é um recorte anônimo da vida (sub)urbana que revela a banalidade e a transcendência da paisagem sentimental das grandes cidades. E segue o crítico dizendo que “a nova paisagem é formada das figuras do imperativo urbano: política, crises, crimes, guerras. Tudo se passa nas cidades, e Lindonéia seria um pedaço de jornal que seria um pedaço da cidade. Não fosse a moldura, que domestica e privatiza Lindonéia, e permite que, em princípio, sendo uma de muitas e muitas anônimas Lindonéias, se individualize e se transforme na Lindonéia de Rubens Gerchman, cantada por Caetano”4.

Quando da preparação da exposição Opinião 65, este grupo de artistas da Nova figuração procurou se aproximar dos artistas neoconcretos, no caso Hélio Oiticica e Lygia Clark. O primeiro irá mostrar naquela exposição os seus famosos parangolés, que apesar de discrepantes do ponto de vista formal em relação à nova figuração, terão em comum uma procura pela energia caótica e explosiva da cultura popular. Interesse similar pode ser detectado em alguns artistas paulistas reunidos em torno a Wesley Duke Lee e que se intitularam Grupo Rex. Eles criaram, em 1966, uma galeria (Rex gallery) e um jornal (Rex Time). Incluem-se aí Geraldo de Barros, Nelson Leirner, Frederico Nasser, Luis Paulo Baravelli, José Resende e Carlos Fajardo. Destes, além de Wesley, que produziu uma pintura/assemblagem bastante curiosa naquela década, será Nelson Leirner quem mais “brincará” com esta linguagem. Falo aqui em brincar, pois para este artista paulista, as linguagens visuais não têm nenhuma função em si, mas apenas na medida em que se deixam manipular pelo seu humor corrosivo. As Homenagens a Fontana, a Adoração ou Altar de Roberto Carlos e os Aprenda colorindo gozar a cor, são apenas alguns exemplos destas transgressões poéticas de Leirner que toma a história da arte, a cultura pop e o espaço publicitário sempre de modo desconstrutivo e irônico. Entre todos os artistas deste grupo, foi Baravelli quem manteve ao longo dos anos um vínculo maior com as questões pictóricas. O que pode ser visto como um traço comum nos trabalhos e exposições organizadas àquela altura, tanto por paulistas como por cariocas, é a provocação ao público, que vai deixando de ser mero espectador para se tornar parte integrante da expressividade das obras. A idéia de participação mobilizava as mentes e os corações, atravessando o discurso político e artístico.

Esta geração, surgida em meados da década de 1960, vai recuperar uma relação com a figura, com a imagem, que havia sido rejeitada desde o começo dos anos 50 quando instaurou-se por aqui a tradição construtiva. A pintura, como se viu, foi sofrendo todo tipo de torção e deslocamento, e a cada novo movimento expressivo, reinventava-se como linguagem. Alguns artistas, todavia, na solidão de seus ateliês e retirados do burburinho político-cultural, seguiram comprometidos com a grande tradição da pintura ocidental. Um deles, já mencionado brevemente no capítulo anterior, é o gaúcho, também vivendo no Rio de Janeiro, Iberê Camargo. Ao longo desta década, seus magníficos carretéis vão se encrespando na tela, tornando-se um magma ancestral de tinta, cor e luz... tudo condensado, compactado, concentrado. Nestes momentos mais duros em que a luta política salta para o primeiro plano, alguns artistas que parecem alienados ao se isolarem, na verdade, estão afirmando que a necessidade da arte fala mais alto neles do que os imperativos do mundo. Como escreveu Merleau-Ponty sobre Cézanne, a pintura era para Iberê seu mundo e seu modo de existir. Sem o engajamento total a ela – que implicava, muitas vezes, no isolamento e na recusa da sociabilidade – sua vida perderia sentido. Sem exagero descabido, podemos afirmar que Iberê Camargo é o mais poderoso pintor brasileiro da segunda metade do século XX.
Um artista da Nova figuração que àquela altura mantinha diálogo com o mestre gaúcho era Carlos Vergara. Sua pintura figurativa de 1965/66, com forte carga gestual e expressiva, refletia esta influência. Todavia, esta expressividade inicial foi se transformando em um código visual mais rápido, impregnado com uma narrativa pop. Há certa proximidade entre seus trabalhos de 1967/69 e os de Glauco Rodrigues. Cabe afirmar aqui que a força matérica da pintura de Vergara irá se realizar plenamente a partir do final da década de 1970.
Quem, como Iberê, também corria por fora naquela década era Tomie Othake. Marcada pela abstração informal que fez escola no começo dos anos sessenta e que tinha no seu conterrâneo Manabu Mabe um dos seus expoentes, a pintura de Tomie vai se desenvolver em uma direção muito particular. Apesar de formada no Japão, ela se deixa contaminar pelo Ocidente e, assim, revela um outro oriente, mais grave e sombrio. Seus melhores trabalhos, seja nos anos 60 seja mais recentemente, não são nada leves; muito pelo contrário, têm densidade e peso. Em vez da tão batida caligrafia gestual, moeda corrente na caracterização de poéticas orientais, a sua pincelada ganha logo volume e textura. Apesar da gravidade há um sentido de amplidão e transparência que denunciam sua origem.

Flávio Shiró é um outro artista a ser incluído nesta lista. Como ele mesmo diz, “sou como a figueira brava, ligado a três continentes por raízes aéreas: suas seivas complementares e de contraste me alimentam”. Tradição japonesa, sensibilidade brasileira, formação européia. A precisão do próprio artista em se definir reverbera na sua pintura. As três raízes que o alimentam estão presentes, como não poderia deixar de ser, na formação de seu estilo onde a fluência caligráfica interage com a potência matérica. Sugestões figurativas aparecem de viés, não obstante o espaço ser integralmente abstrato. A mesma aposta na figura pode ser vista na guinada do ex-concretista Ivan Serpa no período que se segue ao golpe militar. Sua pintura negra ganha ares mórbidos com alguma tensão expressiva.

Quem realiza uma pintura de altíssima qualidade neste momento é Mira Schendel. Das naturezas-mortas à abstração lírica, sua obra caminha solitária, tendo como substrato uma força expressiva que se desentranha da artesania pictórica, da textura peculiar de suas têmperas e óleos. Mira é uma das grandes artistas brasileiras do período, com uma obra que caminha entre o lirismo de Ione Saldanha e a pesquisa experimental de Lygia Clark.

Voltando para o desenvolvimento histórico do Neoconcretismo e da Nova figuração, chegaremos ao final daquela década com um nome na ponta da língua: Raymundo Colares. Este artista mineiro surge junto com Antonio Manuel, Cildo Meireles, Artur Barrio e Guilherme Vaz em torno das agitações de 1968 e do balcão do bar do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sua pintura misturava forte influência da abstração geométrica concretista com uma atenção redobrada pela visualidade urbana. Seus ônibus captados sempre na velocidade fragmentária das ultrapassagens e estruturados por uma grade geométrica, conseguem ser pop e abstratos simultaneamente, trazendo Mondrian, um apaixonado por jazz, para o ritmo acelerado do rock and roll. Um outro elemento fundamental neste trânsito entre o pop e a geometria são os seus maravilhosos gibis, cujo manuseio do público gerava um movimento orgânico dos planos/páginas de cor. Este lance de Colares é mais um genial desdobramento da pintura para além do quadro.

Chegada a década de 1970, o meio de arte brasileiro vivia em grande parte no exílio. Mesmo os que aqui permaneceram, sofriam com a censura e as dificuldades institucionais. A pintura, fora alguns poucos abnegados de sempre, não conseguia seduzir os mais jovens na sua direção. Desde o final da década anterior, a imediatez e a perecibilidade das performances/ações e a opção pela linguagem conceitual, pareciam a melhor estratégia para desafiar as urgências do mundo e do sistema de arte internacional. Dois artistas tentaram e ainda buscam com certo sucesso, cruzar a pintura com a ação performática, são eles Ivald Granato e José Roberto Aguilar. Este último, com seu gestualismo, acenou com muita originalidade para os grafites urbanos.

Todavia, do ponto de vista estritamente pictórico, pode-se dizer que a década de setenta foi uma década perdida. Tudo bem, alguns artistas como Cildo Meireles e Artur Barrio realizavam desenhos de alta densidade expressiva. No entanto, o forte nas duas produções são as instalações, objetos e ações. O mesmo pode ser dito a respeito de Antonio Manuel; todavia, no seu caso, há uma produção gráfica/pictórica realizada na virada dos anos sessenta para os setenta, e na primeira metade desta década, que deve ser sublinhada. Refiro-me aos seus trabalhos utilizando os flans de jornal, onde a estrutura formal da paginação é revelada para além do imediatismo da notícia – este tipo de trabalho deve ser visto em paralelo às suas interferências criando notícias fictícias e críticas em tiragens da primeira página do jornal O Dia, que àquela época concentrava-se nas reportagens policiais com imagens fortes e sensacionalistas. Distribuídos em certas bancas da cidade, burlavam os entraves da censura, criando um atrito político efetivo. Vemos aí que se por um lado há a necessidade de se manter uma pesquisa formal de caráter construtivo, esta deve ser combinada com uma atuação política sintonizada com a realidade do país. Entre parênteses, cabe adiantar que a produção de pinturas abstratas e geométricas, usando tintas e tela, ganhará destaque na produção de Antonio Manuel a partir da década de 1980, sem impedir, contudo, que surjam concomitantemente instalações de enorme intensidade plástica e política – como O Fantasma, de 1995.

Já um artista como Paulo Roberto Leal, menos interessado na radicalização das atitudes poéticas, pretendia dar continuidade ao receituário concretista, produzindo objetos construtivos de fatura correta, mas tendendo para o decorativismo. Quem conseguiu realizar uma pintura singular neste conturbado começo de década foi a já veterana Maria Leontina. Com um percurso iniciado nos anos 1940 e que teve uma trajetória moderna típica - da pintura figurativa tendendo para a abstração geométrica na década seguinte, dialogando de perto com os trabalhos do seu marido Milton Dacosta. Todavia, será só no fim de sua carreira, nestes anos sombrios entre 1971/75, com suas páginas e umbrais/altares, que a sua obra realizar-se-á plenamente. Leontina usa uma paleta quente e uma pincelada tensa que dilui as formas e os planos. Ao contrário dos quadros de Dacosta, a grande maioria dos seus não tem linha, só manchas. Sua pintura traz um drama que inexiste na do marido. Ele busca uma forma-espaço, ela uma forma-tempo, conquistada sublimemente nesta primeira metade da década de setenta.

A chegada à Lua pelos americanos, em 1969, televisionada para todo o planeta, projetou-nos no infinito. A Terra passava a ser, de fato, um mero ponto no universo. A possibilidade de o homem se “libertar” da prisão terrena ganhara, com a ida à Lua, uma efetividade exasperante. Sem a tradição por traz e com o universo escancarado à sua frente, a humanidade iniciava, desnorteada, a década de 1970. Tudo parecia permitido: liberdade e desespero caminhavam irmanados. Não cabia escolha, era fundamental viver a complexidade. A arte não podia evitar estas perplexidades. Vivendo a crise de Maio de 68 em Paris e indo logo em seguida para Milão, Antonio Dias depura sua poética dos vestígios expressionistas e mergulha corajosamente no vazio, tentando dar voz ao silêncio da pintura. Nenhum outro artista brasileiro equacionou, como ele, pintura e arte conceitual. O uso das palavras, palavras-fragmento, junto às pinturas, como parte do abismo infinito destas telas, contribui como acenos indiretos, dissimulados, para eventuais significados, sempre parciais, suscitados por elas. Não era uma época para se ter certeza sobre nada. O vazio que se abre para o espectador diante destes trabalhos pode ser visto como uma forma de resistência em um país tomado pela censura. Como observou Zuenir Ventura, “o vazio era mais uma metáfora para descrever com certa exatidão o quadro cultural dos anos 1969/1971, em que as correntes críticas, dominantes entre 1964/1968, se tornaram marginais, perdendo em grande parte a possibilidade de influir diretamente sobre o seu público anterior”5.

Para além do “vazio” destas pinturas, há toda uma produção neste momento realizada com super 8, vídeo e projeção de slides. Os quase-cinemas, para usarmos a denominação de Oiticica, rompiam com a narrativa linear do cinema-ficção e procuravam uma contaminação maior entre a imagem, a forma, o espaço e o tempo. Entre os artistas que exploraram estes novos meios tecnológicos naquele meado de década temos Anna Bella Geiger, Lygia Pape, Antonio Manuel, Antonio Dias, Hélio Oiticica, Anna Maria Maiolino, para citar só os mais evidentes na cena carioca. Para não falar também dos trabalhos em fotografia que começaram a ganhar espaço experimental, estabelecendo diálogos enviesados com a tradição pictórica, com toda uma pesquisa de texturas visuais – penso em Iole de Freitas, Arthur Omar, Miguel Rio Branco e Carlos Vergara.

Outros pintores, todavia, mais ansiosos na defesa de suas certezas históricas, rejeitavam o experimentalismo conceitual repondo na ordem do dia um realismo-fantástico predominante em outros países latino-americanos. Refiro-me especialmente ao goiano Siron Franco e ao pernambucano João Câmara Filho, cujas obras ganharam terreno naquele mesmo momento. Cabe frisar que no caso deste último artista, havia por trás do seu trabalho toda uma tradição figurativa pernambucana que não pode ser menosprezada. Ambos faziam uma crônica visual da situação política e social, focando no grotesco, no perverso e no insólito da realidade brasileira. O diálogo com a caricatura política deve ser ressaltado nos dois artistas. Segundo João Câmara Filho, a caricatura não servia como um modelo de ordem plástica, “mas sim de ordem crítica, de disposição crítica, de possibilidade de agudização crítica”6.

Algumas perguntas vêem à cabeça diante deste cenário: será que a referência temática à política, independente da linguagem que lhe dê atualidade, pode criar uma nova consciência diante da realidade? Será que as boas causas levam necessariamente à boa arte? Será que é a política que motiva a arte ou a arte que se faz política? O que será que incomodava mais à ditadura: algumas letras engajadas ou a agressividade formal do tropicalismo? Será que o experimentalismo conceitual furtava-se diante da realidade ou era uma forma radical de resistência? Será esta pintura realista uma forma de enfrentamento ou de acomodação? Independentemente das nossas opções, o que deve ser ressaltado é que a arte faz política à sua maneira e que, em vez de dizer como se deve agir ou pensar, ela transforma nossas maneiras de sentir e de ver a realidade. Em vez de confirmar nossas certezas, a arte nos obriga a rever nossas expectativas de sentido – tanto em relação ao mundo como em relação à própria arte. Neste sentido de uma produção poética de interrogação e ruptura com os suportes tradicionais, a década de 70 foi extremamente fértil, tendo sido o momento de lançamento de artistas fundamentais como Tunga e Waltércio Caldas, assim como Milton Machado e o escultor Ivens Machado.

Antes de mudarmos de década, devemos mencionar as pinturas de Angelo de Aquino e seu humor pop, assim como a pesquisa abstrata de Adriano de Aquino, que com o passar dos anos vem se depurando e ganhando força. Com o processo de abertura política e a anistia, o clima vai ficando menos opressivo e novos ventos começam a soprar: a volta da democracia injetou uma energia otimista na cultura brasileira. No que diz respeito às artes visuais, dois acontecimentos foram determinantes para um redirecionamento do circuito. Primeiro, Rubens Gerchman, depois de uma longa temporada no exterior, volta ao Brasil e em 1975 assume no Rio de Janeiro a direção da Escola de Artes Visuais do Parque Laje, dando uma nova orientação pedagógica e atraindo artistas e jovens para o belo casarão do Jardim Botânico. E o fatídico incêndio do MAM-RJ em 1977 apagou a efervescência que brotava naturalmente com a circulação dos artistas entre a cinemateca, o bar, o galpão-escola e as salas de exposição. Em 1978, com o Parque Laje já sendo o lugar que atraía a juventude interessada em arte no Rio, a escola muda de direção, entrando Rubens Breitman no lugar de Gerchman, e artistas como John Nicholson, Charles Watson e Luis Áquila são incorporados ao corpo docente. Começa a nascer aí a “geração 80” e, com ela, o que se denominou de resgate da pintura depois de uma época cinzenta e cerebral.

Como já deve ter ficado claro para o leitor que até aqui veio acompanhando o argumento, estas oposições entre experimentalistas x tradicionais ou arte conceitual x pintura, servem muito mais para alimentar polêmicas vazias do jornalismo cultural do que para qualificar uma situação artística. A história da arte sempre foi pautada pela tensão e complementariedade destes pólos artificialmente antagonizados. Independentemente dos argumentos descabidos dos ideólogos da geração 80, houve naquele momento – e não só no Brasil, é claro - uma recuperação da pintura e de sua capacidade de atualizar a tradição em um mundo de imagens flutuantes e bastante poluído visualmente. Além disto, foi também naquele período, entre a cooptação e o profissionalismo, que se redefiniram os termos da relação entre arte e mercado. Além daqueles nomes já citados que foram lecionar no Parque Laje e que apostavam em uma pintura marcada pela gestualidade e por uma paleta de cores quentes e fortes, devemos mencionar o nome de Jorge Guinle, cuja pintura de alta densidade expressiva vinha pautada por um “olho” muito bem formado pela melhor tradição da arte européia e norte-americana – Matisse e De Kooning, principalmente. Como escreveu o crítico Ronaldo Brito a respeito da sua pintura, “existe, com certeza, um toque pop na sua consciência histórica – uma atitude basicamente distanciada e irônica marca a sua posição diante dos fetiches modernos”7, devendo ser ressaltado que a potência cromática e a expressão gestual destas telas não deixam este distanciamento transformar-se em niilismo poético.

Outros dois artistas que começaram suas trajetórias anteriormente, mas que por razões particulares, só agora, no começo dos anos 80, voltariam ao circuito com uma pintura da mais alta relevância, são Carlos Zílio e Eduardo Sued. O primeiro, surgido no mesmo contexto dos artistas da Nova-figuração e participando de exposições como a Nova Objetividade Brasileira no MAM-RJ em 1967, optou, corajosamente, pelo engajamento político, pela clandestinidade, tendo sido preso e, em seguida, viajando para Paris onde realiza seu doutoramento. Sua produção de desenhos realizada nas dependências do Dops no começo da década de 70 impressiona pela contundência e verdade expressivas. Morando em Paris, seu olhar aproxima-se do Louvre e da grande tradição da pintura ocidental. A influência da arte norte-americana logo se fará notar, mais especificamente Barnett Newman, cabendo destacar Quem tem medo de verde, amarelo, azul e branco e de Barnett Newman?, de 1981, além, é claro, de toda sua produção subseqüente orientada pela linha vertical dividindo a tela e perfurando a superfície pictórica. A pintura de Zílio vem nestas últimas duas décadas equacionando de modo muito particular economia formal e força plástica.

Eduardo Sued surge como gravador nos anos 60, mas será na virada para a década de 80, que sua pintura atingirá a maturidade, ampliando a escala da geometria abstrata entre nós. Ele é herdeiro direto da tradição construtiva na arte brasileira. A ruptura, de caráter mais experimental, levada a cabo pelos artistas neoconcretos em final dos anos 50, foi por muitos interpretada como uma superação das premissas da forma construtiva. Ledo engano. Da dialética experimentação-construção vivemos. A força inventiva e poética de nossos artistas, mesmo em seus momentos mais radicais e informes, surge deste solo construtivo. Desta maneira, estamos obrigados a revisitar e atualizar constantemente esta nossa vocação. Daí a importância da obra de Sued na cena contemporânea. Além disso, não podemos esquecer de mencionar a importância da cor em sua obra, dando continuidade e desdobramento à nossa importante tradição de coloristas, que inclui nomes como Volpi, Carvão, Oiticica, Ione e Guinle. Como observou o crítico Ronaldo Brito, “acima de tudo, Eduardo Sued é um liberador da energia da cor, um corajoso colorista brasileiro de sensibilidade contemporânea – tanto pelos agudos azuis, amarelos e vermelhos quanto pelos graves ocres e pretos ou pelos cinzas e prateados atonais mais recentes”. 8

Através da cor, podemos passar para os artistas da chamada Geração 80. Comecemos no Rio e com duas coloristas: Cristina Canale e Beatriz Milhazes. O que é singular nas pinturas de Cristina Canale é que elas conseguem ser ao mesmo tempo intensas e suaves. E a razão disso é o uso inteligente das cores. Elas não entram em conflito com os volumes, contendo a voluptuosidade das formas orgânicas. Uma vez mencionadas as cores, apontemos, com toda a precaução necessária, para o traço feminino de seus trabalhos. Sua paleta amena, as formas orgânicas e caóticas, e, mais do que isso, sua atenção voltada para a revelação do lado de dentro das coisas, compõem uma poética feminina, que com o passar dos anos e sua ida para a Alemanha deram-lhe um acento peculiar. No caso de Milhazes, o que mais impressiona é o despojamento das formas e a sua coragem em assumir a natureza decorativa da pintura. Seu diálogo com a obra de Tarsila e sua paleta caipira/cosmopolita - onde a festa junina e as favelas cariocas interagem com Léger - surge como uma nova possibilidade de se pensar a cor fora do eixo abstrato-construtivo da arte brasileira. Antes da universalidade da cor-forma há a particularidade lírica da cor local. Certamente, apesar das vinculações de Carvão e Ione Saldanha com a tradição concreta, ambos devem ser mencionados na formação da sensibilidade cromática da artista.
Falar sobre a pintura brasileira nos anos 80 nos obriga a escolhas e cortes bastante radicais. É impossível mencionar todos os pintores que de alguma maneira participaram daquela inflação pictórica. A abundância pode ser entendida como estratégia de um mercado incipiente e desorientado. Cabe ao olho de cada um decidir sobre quem merece comentário; quem se manteve, de lá para cá, com uma pintura relevante e restringir, assim, o foco da análise. Todos os que aqui serão mencionados entram como apostas do meu gosto particular; e é com a soma e enfrentamento dos gostos particulares que se vão constituindo os consensos e separando-se o joio do trigo ao longo da história.

Dito isto, voltemos à cor, tratando de Manfredo Souzaneto e Paulo Pasta. O primeiro, fazendo jus à sua origem, trabalha essencialmente com pigmentos naturais das montanhas mineiras. Entre parênteses, valeria destacar que foi também no transcorrer desta década que Carlos Vergara deu um redirecionamento à sua trajetória, retomando a pintura, ampliando a sua escala, tornando-a abstrata e, posteriormente, experimentando pigmentos naturais e trabalhando nas bocas de forno – estabelecendo, assim, um diálogo transversal entre pintura e gravura, na medida em que a fuligem e o calor misturavam-se, como se fosse uma impressão, aos pigmentos aderidos à tela. Em Souzaneto, a manipulação de pigmentos - sempre pouco diluídos e sugerindo uma tactilidade ao olho do espectador - correu paralela à sua experimentação com formatos irregulares, criando relevos bi-dimensionais na fronteira entre a pintura e a escultura.

Já o paulista Paulo Pasta, assumindo a influência do pintor italiano Giorgio Morandi, deu à sua obra uma tonalidade lírica bastante peculiar. Como observou o próprio artista em uma entrevista, “a coisa que mais me toca, que mais me preocupa é o fato de que tudo se acaba, que nada permanece, que todo mundo vai morrer - essas coisas todas me acompanham. (...) Eu tenho a impressão de que pintar é um pouco isso para mim também, ou me salvar, o que dá no mesmo. A minha pintura tem essa contradição também: ao mesmo tempo que tem essa coisa apagada, por trás, ela tem uma potência de cor, uma vontade de que tudo esteja bem, uma idealidade, que é um pouco o motor dela.”9 Uma certa vontade de contenção do tempo, presente nas suas telas, é antes de tudo uma consciência da finitude, do limite, não só do homem, mas da arte. E isto fica muito evidente para quem, como ele, em uma época cheia de possibilidades, tomou o fazer pintura como uma opção necessária e insubstituível.

Na mesma época – começo dos anos oitenta - surgia em São Paulo o grupo de artistas conhecidos como “Ateliê casa 7” – Nuno Ramos, Fabio Migues, Rodrigo Andrade, Paulo Monteiro e Carlito Carvalhosa. Ao contrário dos seus contemporâneos do Rio, o que os motivava era uma atitude mais dramática, noturna, punk. Guardadas as diferenças entre as artes plásticas e a cena nascente do rock brasileiro, poderíamos dizer que eles estariam para os Titãs assim como os cariocas estariam para os Paralamas do Sucesso. As pinturas dos cinco artistas mantinham afinidades indiscutíveis, atacando as enormes folhas de papel barato e resistente com um gesto agressivo a la Philip Guston e uma quantidade superlativa de tinta industrial. Com o passar dos anos, antes mesmo do fim daquela década, suas obras tomaram caminhos diferenciados, cabendo destacar a acumulação de materiais variadíssimos sobre tela, conhecida como “tudo sobre tela” de Nuno Ramos, e a afirmação de um gesto cromático poderoso em Fabio Miguez, que o coloca como o discípulo mais direto e interessante de Jorge Guinle na cena contemporânea. Rodrigo Andrade também foi concentrando o seu gesto e dando densidade matérica às suas cores. Monteiro e Carvalhosa, entre a pintura, o desenho e a escultura, tomaram rumos não menos relevantes. Os cinco artistas da Casa 7 mantiveram nestas duas décadas subseqüentes, poéticas bastante variadas, cujo vértice pictórico jamais foi ocultado ou negado – mesmo no caso de Nuno Ramos, com sua indiscutível potência escultórica. Caberia ainda destacar, no circuito da pintura paulistana desenvolvida a partir dos anos 80, Sérgio Sister, Marco Gianotti e Sérgio Fingermann. Os dois primeiros pertencem à tradição lírica que teve em Volpi o seu ponto de partida, sendo que no caso de Gianotti há também uma melancolia goeldiana atravessando seu flerte com a figuração. No caso de Fingermann, vemos uma pintura de fatura artesanal, sempre acenando para alguns fragmentos de imagens que se descolam de um fundo espesso carregado de matéria pictórica. As suas telas revelam uma perda de contato com o presente, como se lamentassem uma impossibilidade poética para a pintura no presente. Ainda em São Paulo, devemos falar de Dudi Maia Rosa, um artista que desloca a pintura através de formatos e materiais atípicos, ampliando as possibilidades do campo pictórico, assim como Carlos Fajardo vem fazendo com o escultórico.

Esta mesma ampliação de formatos pode ser vista no trabalho de Leda Catunda, outro nome importante surgido naquela década. Suas pinturas sobre vários tipos de suporte – toalhas, lençóis, camisetas, casacos etc – mantinham uma relação lírica e feminina com a imagem (pode-se imaginar um diálogo sutil dela com Cristina Canale) sem perder contato com a dimensão matérica e táctil das tintas. Em muitos de seus trabalhos produz-se um estranhamento do olhar que vem dos materiais moles e inusitados que à maneira de Claes Oldenburg pervertem nossa relação com os objetos/imagens apresentados. O caráter mais lúdico, ingênuo até, dos trabalhos dos anos 80 dava-lhe um interesse que aos poucos foi se perdendo.

Depois deste desvio paulista, podemos voltar para o Rio e destacar dois pintores bastante importantes: Luiz Zerbini e Daniel Senise. O primeiro, recuperava para a pintura o interesse na imagem, pondo em tensão uma certa irreverência pop com uma densidade pictórica neo-expressionista. Suas cores vibrantes dão intensidade poética às suas pinturas que retratam a realidade caótica e sensual das cidades contemporâneas. Vendo suas telas, passadas mais de duas décadas, contatamos um vigor singular que lhes dá uma dignidade própria. Do conjunto das pinturas da exposição inaugural da geração em 1984, visto de hoje talvez seja o trabalho menos datado, com uma compulsão figurativa interessante.

Senise, por sua vez, talvez seja o artista mais emblemático da Geração 80. Foi quem primeiro despontou no mercado internacional, tendo sua obra vinculada, de saída, com o neo-expressionismo alemão, mais especialmente com a pintura de Anselm Kieffer. Na verdade, a pintura que o lançou entre 1984 e 1987 é bastante gestual e com sugestões figurativas, mantendo algum diálogo enviesado com os artistas da Casa 7. Aos poucos, a matéria pictórica foi se sobrepondo ao gesto e de dentro dela iam se desgarrando suas insinuações imagéticas. Com este encrespamento da superfície, sua pintura ganhou densidade e força dramática. Como observou Ivo Mesquita, “as imagens vão ficando cada vez mais imbricadas com o processo de construir o plano pictórico, são cada vez mais engendradas na articulação entre figura e fundo”10. O que deve ser notado no desenvolvimento do trabalho de Senise e que tem a ver com o clima espiritual da arte brasileira depois Geração 80, diz respeito à descrença na capacidade redentora da arte e da História. A arte não salva, o futuro não pressupõe a sublimação do presente. Cabe aos artistas, isto sim, multiplicar as possibilidades de ser e aparecer da realidade, utilizando-se de todos os meios expressivos que se fizerem necessários.

O que já fica claro nesta breve análise da Geração 80 é a pluralidade de caminhos da pintura em um mundo desiludido das promessas unificadas das utopias modernas. Nada de adiamentos em nome do futuro; tudo ao mesmo tempo, agora. A pluralidade é a regra. Do ponto de vista da arte, esta polifonia fica mais evidente se tomarmos alguns artistas seminais daquele momento, cujas poéticas, no final da década, destacaram-se pela mistura de meios expressivos. Refiro-me a José Leonilson e Jac Leirner. Os trabalhos de Jac Leirner, como os de seu tio Nelson, põem em xeque nosso modo de classificá-los. Tomá-los como pintura stricto sensu é reduzir sua condição instável e é esta instabilidade, justamente, que devemos enfatizar para falarmos de pintura hoje. Suas composições bi-dimensionais com notas de “Cem Cruzeiros”, realizadas entre 1986 e 1987, põem em tensão as noções de forma abstrata, de valor, de apropriação, de autoria. Os textos anônimos rabiscados nas notas contrastam com a rigorosa disposição geométrica com que a artista vai arrumá-los na parede. É como se o rabisco irresponsável e sem intenção de arte de um sujeito anônimo criasse um ruído capaz de desestabilizar os excessos formalistas do olhar abstrato moderno. O mesmo regime poético equacionando deslocamento, apropriação e rigor formal pode ser visto nas suas outras séries de trabalhos utilizando sacolas de museus, camisetas e cartões de identificação profissional; enfim, trata-se sempre de um arsenal de referências institucionais onde ironia e condescendência caminham juntas.

Vemos assim, que na virada para a década de 1990, há um desvio conceitual, ou melhor, a retórica vazia do “prazer da pintura” que comandou a sua glamourosa retomada no começo da década de 1980, foi sendo suplantada pela necessidade de rever o lugar e as possibilidades da pintura em um mundo poluído visualmente e onde a contaminação dos meios – imagem/palavra/forma/espaço/movimento – foi gerando linguagens visuais impuras e híbridas. Ninguém melhor do que o cearense José Leonilson para falar deste momento. Sua obra de curta duração – interrompida pela morte prematura – foi substituindo as tintas e os pincéis pelo bordado, pela costura e pela palavra, realizando um movimento gráfico sutil e altamente lírico. O que mais impressiona na trajetória de Leonilson é a simplicidade com que ele produz seu trabalho, perpassando sentimentos aparentemente banais e ingênuos com um sopro de poesia e maravilhamento. A escolha dos materiais, das cores, do processo, das palavras é sempre meticuloso e é tudo costurado com delicadeza e muita autenticidade. Como observou LisetteLagnado, “o bordado inaugura uma nova temporalidade. A obra, vagarosa, se constitui com uma acuidade precisa. Com o aprendizado do bordado, o conflito entre desenho e cor se esvazia (...) Num processo de depuração, entre 1990 e 1993, a pintura se torna quase monocromática, com pequenos desenhos sobre uma única cor, profunda e ativa”11. O mais significativo na obra de Leonilson é a coragem em assumir um tom confessional, em deixar-se falar através da arte, e deixá-la falar através de si, do seu eu fragmentado, hesitante e solitário. A pintura se aproxima assim das dúvidas existenciais que afligem a subjetividade contemporânea. A simplicidade e desambição de sua poética acabaram por se tornar suas principais qualidades. É um nome fundamental da arte contemporânea brasileira.

Uma artista como Vânia Mignone, que surge na segunda metade dos anos 1990, está diretamente ligada a esta referência de Leonilson, cuja presença no cenário paulista foi determinante. Suas pequenas pinturas encantam pela fluência do traço, pelas opções cromáticas e pela veia auto-biográfica e lírica que se evidenciam através das palavras/desenhos. Mignone, sem dúvida, do ponto de vista da pintura, é o nome mais interessante surgido na cena paulista na última década. Há sentimento e verdade entranhados em suas delicadas telas. A maneira de agrupá-las na parede, criando algumas narrativas e contaminações, é uma característica de suas pinturas, remetendo a um diálogo com a estrutura das histórias em quadrinhos.

Em todas as décadas falamos de pintores extemporâneos, aqueles que apesar de não se enquadrarem no espírito da época, realizaram trabalhos dignos de nota. Desta vez destacaremos dois “artesãos” da pintura, que além da realização das obras tiveram uma atuação importante como professores de pintura na década de 80: José Maria Dias da Cruz e Katie Van Scherpenberg. Quando me refiro a eles como artesãos, não pretendo, em hipótese alguma, caracterizá-los como meros fabricadores de tela, pois o que lhes é peculiar é a carga teórica e intelectual que atravessa o manuseio das tintas e das cores. José Maria é dos grandes conhecedores da cor, tendo inclusive publicado, em 2001, o livro A cor e o cinza, onde expõe suas reflexões sobre a cor, resumindo e traduzindo toda uma vida de experiência pictórica. Sua pintura foi sempre altamente reflexiva, cada gesto carrega algum tipo de pergunta sobre sua razão de ser no quadro. Suas pinceladas de cor vão se integrando umas às outras, criando uma unidade rítmica na superfície da tela. É um pensamento cromático, altamente emotivo, que se desenvolve em cada uma de suas telas. No caso de Van Scherpenberg são os pigmentos, a matéria pictórica, que se torna pensamento, luz e forma na superfície de seus quadros. A sua pintura, de toques sutis e refletidos, requer concentração e tempo, ambas condições avessas à aceleração da experiência visual contemporânea. “Eu me vejo como artista da periferia que continua como pintora-artesã apesar da consciência de que talvez a novidade esteja em outro lugar. Não me importo, há muito tempo escolhi a pintura como instrumento para poder pensar e chegar a um conhecimento, talvez até a algum saber”12.

Seja misturando-se a outros meios, seja concentrando-se na sua própria materialidade cromática e pictórica, a pintura chega ao final do século XX tendo que responder à pergunta sobre sua razão de ser e de que modo sobreviver para além das determinações técnicas. A própria Scherpenberg vem desenvolvendo um trabalho com pigmentos em espaços naturais – nos jardins do Parque Laje, na praia, etc. – que é um esforço de ampliação do campo da pintura, uma maneira de tomá-la sem as pré-determinações do suporte tradicional. Uma grossa camada de pigmento é posta sobre a areia, no limiar do território fronteiriço com a espuma das ondas, que, aos poucos, vai lavando, diluindo e tragando o pigmento para dentro do mar. Há um sentimento de abandono desta pintura incorporada à natureza. A paulista Marina Saleme também vem tentando esta monumentalização de planos de cor, pintando diretamente sobre as paredes, criando murais, igualmente belos, de pigmento e nostalgia. Dando um sentido social e político a este deslocamento monumental da pintura, Monica Nador começou na década de 1990 a trabalhar junto a comunidades carentes – nos municípios de Coração de Maria e Nilo Peçanha, na Bahia com apoio do programa Comunidade Solidária - pintando as fachadas e, às vezes, o interior das moradias populares. Como observou Tadeu Chiarelli, “a transformação de uma primeira fachada (e às vezes do próprio interior da residência) mobiliza outros moradores que, com a ajuda inicial (ou não) da artista, passam a transformar seus próprios domicílios”13. Um outro artista que vem incessantemente transferindo sua experiência em pintura para intervenções em espaços públicos é Carlos Vergara. Seus trabalhos nas lojas da Varig mundo afora, em shopping centers e, mais recentemente, com o enorme painel para o aeroporto de Porto Alegre, ao contrário de uma diluição e banalização do fazer pictórico, parece-me um esforço concentrado de disseminação de uma inteligência visual no mundo cotidiano. Independente de serem ou não tomados como arte ou como pintura, estes trabalhos servem como desdobramentos possíveis da prática de ateliê fora das suas convenções, tendo como efeito possível aguçar nossa percepção e fazer com que nosso olho transite de modo menos regressivo e desatento pela superfície do real.

Isto também pode ser visto pela apropriação de materiais de uso rotineiro pelas práticas pictóricas. A relação entre atenção e desatenção diante da aparência do cotidiano ganha um outro sentido, não mais da arte para o mundo, mas, ao contrário, do mundo para a arte. Penso, por exemplo, em José Bechara e Emanuel Nassar. O primeiro, ainda no começo dos anos 90, tomou as lonas usadas de caminhão como suporte para realizar a oxidação com palha de aço, criando situações pictóricas variadas e intensas. O olho do artista recortava na lona furada, costurada e manchada por anos de estrada, o conjunto de interferências junto às quais e sobre as quais ele iria atuar com as oxidações. O que seria feito pelo artista potencializaria o que o tempo e o uso já haviam realizado na lona e não eram percebidos pelo olho comum, desatento e apressado, de quem passa pelos caminhões. Retirar do uso, apropriar e interferir são processos válidos para o pintor contemporâneo, para a realização de uma experiência pictórica atual. O paraense Emanuel Nassar, de modo similar, apropria-se do conjunto de bandeiras representativas dos vários municípios do seu estado e realiza uma instalação/pintura monumental na Bienal de São Paulo de 1998. Ou então, atua sobre placas de caminhão, painéis de botequim ou qualquer outro suporte já inserido na visualidade cotidiana, mas despercebido em função de um olhar pragmático anestesiado frente às sutilezas da realidade aparente. Além de se apropriar, Nassar normalmente pinta sobre estes suportes com tinta industrial ou acrílica, que é capaz de aderir e resistir às rudes superfícies utilizadas.

Um outro tipo de apropriação pode ser visto nas pinturas de Adriana Varejão, que apesar de ter surgido nos anos oitenta, foi na última década que ganhou repercussão, inclusive internacional. A apropriação aí é histórica, trabalhando sobre temas e referências da história da arte brasileira, de nossa memória iconográfica. Em trabalhos mais recentes, ela incorpora a tradição da azulejaria portuguesa em suas pinturas, criando pinturas/instalações que reproduzem abstratamente a caudalosa volumetria do barroco. Segundo a crítica e ex-curadora do Withney Museum de Nova York, Louise Neri, que escreveu um ensaio sobre a obra da artista, “Varejão tem invocado a história rica e suscetível do azulejo, a começar pela série ‘Proposta para uma catequese’, de 1993, na qual associa o milagre cristão da transubstanciação a fantasias canibais adaptadas das gravuras de Theodor de Bry em sua famosa antologia América, do século XVII. Em seu trabalho Azulejões as densas e lívidas inscrições de história, cultura, paisagem, geografia, e corpo humano que povoavam suas séries anteriores tornam-se transcendentes e esquematizadas, organizando-se num vasto delírio azul e branco de padrões e imagens fragmentadas, representadas numa malha de tinta e tela para simular uma parede azulejada de proporções gigantescas”.14 Este jogo de apropriação e desconstrução do passado passou a ser moeda corrente na pintura brasileira na década de 90, ecoando discussões pós-modernas sobre citação e simulacro. Nomes como Caetano de Almeida e o cada vez mais irreverente Nelson Leiner, com sua série “construtivismo rural”, podem ser usados como exemplos paradigmáticos.

Cabe reafirmar que a maioria dos artistas citados até aqui, associados a qualquer uma das décadas, continua pintando e realizando trabalhos significativos. A própria escolha dos nomes condicionou-se ao fato de que suas obras seguiram um percurso relevante até os nossos dias.Nomes como Daniel Feingold, Marcus André, Marianitta Luzatti, Davi Cury, Gabriela Machado e Elizabeth Jobim, que surgiram com força nos últimos quinze anos, vêm realizando trabalhos silenciosos e mantendo-se fiéis ao árduo exercício dos ateliês. Para cada um deles, a artesania da pintura – os pigmentos, as tintas, o gesto, a cor, a linha - é um processo imprescindível na interrogação sobre o mundo visível e mantiveram suas práticas radicalmente comprometidas com o lento e sempre prazeroso fazer pictórico. Mais recentemente, em 2005, Lucia Laguna surgiu com uma pintura interessante, com suas linhas e cores em contraste dinâmico. Há algo de um olhar urbano e em movimento que dialoga de perto com as pinturas mais recentes de Daniel Feingold.

Feito este recorte histórico da pintura brasileira desde os anos 1960 – e suas hibridações com outros meios expressivos – algumas perguntas devem ser colocadas de modo a refletirmos sobre seus possíveis desdobramentos futuros. Como querer dar ao silêncio da pintura uma fala contemporânea? Como uma pintura pode ser contemporânea? Até que ponto a interseção da pintura com outros meios e suportes, seja interagindo com as novas tecnologias da imagem, seja buscando uma contaminação maior com os espaços públicos, pode ser vista como forma de resistência e transformação poética? A resistência da pintura talvez seja a resistência do olho que quer se manter preso ao corpo, à opacidade, ao tempo, enfrentando os imperativos da sociedade do espetáculo. É óbvio que a discussão desta resistência pode descambar para uma nostalgia em relação ao que já foi e não é mais, e o que interessa, certamente, não é o passado da pintura, mas sua necessidade no presente. Por isto, voltar para onde começamos, ou seja, para o artista Hélio Oiticica discutindo a superação do quadro (plano) e a sobrevivência da pintura, talvez traga uma luz a mais à nossa reflexão. Trata-se de rever a questão da especificidade da pintura, tão cara ao discurso modernista, deslocando a atenção das questões relativas ao suporte para uma outra relativa à “experiência” pictórica - que talvez possa se apresentar independente do “meio” pictórico. Penso, por exemplo, naquela frase do Merleau-Ponty em que ele diz que “ seja qual for a civilização em que nasça, sejam quais forem as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias de que se cerque, e mesmo quando parece fadada a outra coisa, desde Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma a não ser o da visibilidade”15. Deste modo, não me parece problemático pensar a atualidade desta “celebração do visível” através de meios não propriamente pictóricos – para além dos pincéis, dos pigmentos e da tela - incluindo a fotografia, o vídeo e o cinema. Neste diálogo entre pintura e meios tecnológicos, principalmente a fotografia, além dos nomes já históricos de Miguel Rio Branco e Arthur Omar, devemos citar artistas mais jovens como José Guedes, Albano Afonso, Brígida Baltar e Vicente de Mello. Do mesmo modo, olhar para experimentações como as de Carlos Vergara, Katie Van Scherpenberg e Monica Nador - mantidas suas diferenças - no sentido de uma disseminação mundana do ato e da experiência pictóricas, parece-me da mais alta relevância na problematização de uma prática historicamente associada aos espaços domésticos da burguesia e à lógica capitalista do mercado. Um outro viés deste deslocamento da pintura para o espaço poderia ser visto na relação entre a instalação de Cildo Meireles Desvio para o vermelho, e a “ação poética” do jovem artista carioca Ducha, “pintando” o Cristo Redentor de vermelho, colando folhas de gelatina sobre os refletores e assombrando os cariocas que porventura olharam para o alto naquela noite da ação ou viram a primeira página do Jornal do Brasil no dia seguinte.

Vislumbra-se assim um “campo ampliado da pintura”, mais plural e includente, capaz de abrigar uma parte das pesquisas com luz, cor e textura das fotografias e vídeos contemporâneos, como também uma certa quantidade de instalações e de intervenções poéticas no espaço público. Este deslocamento do meio para a experiência pictórica não deve ser lido como um argumento linear e excludente, inviabilizando todas as pesquisas e trabalhos com os pincéis, os pigmentos, a tinta e a tela. Isto também permanece, como vimos exaustivamente ao longo deste ensaio. Uma coisa que deve ser dita, para não acharmos que vivemos uma época especialmente ingrata em relação à pintura, é que mesmo se olharmos para a década de 80, que pretendia ser um “retorno à pintura” contra o cerebralismo da arte conceitual, vemos que para além do estardalhaço ideológico restaram poucos pintores, tanto aqui como no exterior, com trabalhos realmente relevantes. Se a pintura/quadro permanecerá ou não como um suporte que nos revele os mistérios e os enigmas da visualidade, depende exclusivamente dos artistas continuarem a sentir necessidade dos pincéis, das tintas e do gesto pictórico. Não cabe à teoria, à crítica ou a qualquer manifesto poético/jornalístico determinar o que deve ou pode ser feito. Para terminar estas reflexões sobre o destino da pintura, repetirei a frase de George Braque usada como epígrafe deste texto: “...podemos desviar um rio de seu curso, mas não fazê-lo voltar à sua nascente”. Enfim, que a pintura siga o seu curso livre das suas obrigações de origem.

Luiz Camillo Osório - Rio, abril de 2002 e janeiro de 2007.

NOTAS:
1 Oiticica, Hélio, Aspiro ao Grande Labirinto, Ed. Rocco, RJ, 1986, págs 26-28
2 Dias, Antonio, Entrevista a Lucia Carneiro e Ileana Padilha in Palavra do artista, Lacerda editores, RJ, 1999, p. 22
3 Duarte, P. S., Anos 60: transformações da arte no Brasil, Campos Gerais ed. RJ, 1998, p. 34
4 Id.ibid, p. 42
5 Ventura, Z., 70-80 Cultura em trânsito, Aeroplano Editora, 2000, RJ, p. 59
6 Depoimento prestado a Frederico de Morais, in Morais, F. ; Lima Sobrinho, B., Cenas da vida brasileira, 1930-1954, 10 pinturas e 100 litografias de João Câmara Filho, Recife, Prefeitura Municipal, 1980, pág. www.itaucultural.org.br-enciclopédia visual
7 Brito, R., Voltas da pintura, in Basbaum, R. (org), Arte Contemporânea Brasileira, Contracapa Editora, RJ, 2001, p. 140
8 Brito, R., O pensamento contemporâneo da cor, Catálogo da Exposição de Eduardo Sued, Centro de Arte Hélio Oiticica, RJ, 1998, p. 16
9 Entrevista concedida pelo artista a Nuno Ramos e Rodrigo Naves, publicada in Paulo Pasta, Edusp, SP, 1998, p. 173
10 Mesquita, I., Território dos sentidos, Daniel Senise, Cosac & Naify, SP, 1998, p. 14
11 Lagnado, L., O pescador de palavras, Leonilson, Galeria de arte do Sesi, SP, 1995, p. 37
12 Entrevista de Katie Van Schepenberg ao autor, in catálogo da exposição Feurbach e eu na paisagem, MAC/Niterói, 2000
13 Chiarelli, T., Panorama 99, Catálogo da exposição Panorama da Arte Brasileira, MAM/SP, 1999, p. 40
14 Néri, L., Admirável mundo novo: os territórios barrocos de Adriana Varejão, Takano Editora Gráfica, SP, 2001, p. 30
15 Merleau-Ponty, M., O olho e o Espírito, Os Pensadores, Abril Cultural, 1980, SP, p. 91

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FORMULÁRIOS


Chardin, a poesia muda e a verdade em pintura


Chardin, que pintor complexo! Difícil falar-se de sua pintura. Mas há uma frase que pode nos permitir alguns comentários. Diz ele que o pintor tem que manter uma certa distância de seu modelo. Pensamos: se há uma aproximação o pintor pode se perder nos detalhes; se um afastamento, se perde da pintura; no devido lugar compreende a verdade da pintura. É curioso
observar suas pinceladas. Não demonstram um gesto, mas a objetividade ou realidade de uma pincelada, como que dissesse "isso é uma pincelada". O mesmo se pode dizer das cores: "isso não é a cor de um objeto, isso é uma
cor." Pouco importa que se muitas vezes muito esmaecida. Cézanne o compreendeu muito bem quando afirmou que "La nature se debrouille." A pintura por si só se organiza dentro de uma lógica. Uma figura, em um quadro de Chardin, nunca aparece inteira em muito de seus quadro, sobretudo naqueles pintados em sua maturidade. Um detalhe identificável, e a figura surge inteira. Há um quadro, uma cena interior. Uma empregada recostada em
um móvel, pousa levemente a mão sobre uns pães em cima do móvel. Na outra mão uma sacola com talvez uma ave morta. A saia é de um azulado esmaecido. A
sacola, os pães, a mão sobre eles pousada surgem pela identificação do rosto da empregada. O cômodo onde ela está, bem sombreado. Se liga por uma porta, pelo lado esquerdo a uma outra sala, mais iluminada. Entre uma sala e outra um filtro enorme em solene perfil, e penso em um objeto carregado de metáforas. Ou uma fronteira entre os dois espaços, o sombreado e o mais claro, filtro que elimina os recalques das sombras e ilumina as possíveis fantasias da empregada no primeiro plano de percepção. No fundo dessa sala contígua, perto de uma outra porta, uma talvez uma projeção da empregada,
conversa com um galanteador. Além desta porta um pedacinho mínimo de céu se apresenta como um limite do mundo dessa adorável empregada.

Uma aproximação de Chardin com o narrativo. O quadro em questão ilustra bem aquilo que Leonardo nos fala: "A pintura é uma poesia muda."

Penso que Chardin nos diz: não é, mas é, basta ver pelos intervalos. Por aí refere-se apenas à pintura, e nos faz pensar na sua verdade.

Noto que hoje há um interesse em Manet. Penso que para se estudar Manet tem que se começar por Chardin. Cézanne disse, diante das flores de Manet que ali estava a verdade da pintura. A verdade da pintura, como motivo da própria pintura, talvez comece em Chardin.

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO

CONVITE TNT | EXPOSIÇÃO E LANÇAMENTO DO LIVRO
O vernissage da exposição "As formas do colorido" e o lançamento do livro "O cormatismo cezanneano", de José Maria Dias da Cruz, se darão no dia 14 de Junho, às 19 horas. O endereço da Galeria TNT é; Estrada Barra da Tijuca, 1636 - Loja A - Itanhanguá. O telefone para mais informações é: 21 2495 5756. A exposição seguirá até o dia 28 de Junho de 2011.